Monólogo

Olhou seus lábios entreabertos e deu um beijo. Um monólogo em forma de beijo na boca que dormia. Pegou sua bolsa e foi embora sem fazer barulho. Não queria que ele acordasse e acabasse com o encantamento. Quebrasse a harmonia do dia como uma gota de molho shoyo na camisa branca. Não queria correr o risco de ser tratada como mais uma que preencheu uma noite sem importância. Preferia sonhar que ele nunca ligaria só porque ela não deixou o número do telefone. Preferia imaginar que, se ele acordasse, a pediria para ficar mais um pouco. Pediria mais um beijo, e mais um, e mais um... Com a mesma pressa e necessidade de quando estava embriagado. Queria continuar se sentindo amada, desejada. Queria motivo para ser feliz ao men os por um dia. Não podia correr o risco de ser chamada de gatinha só por ele não lembrar seu nome. Não agüentaria seu olhar de surpresa ao perceber que não acordara sozinho. Não queria ver nos seus olhos o mesmo desalento das crianças que procuram latas recicláveis nas lixeiras do Centro. Muito menos o desespero dele algum tempo depois, quando ele mandasse que examinassem seu sangue maldito. Quando ele descobrisse as conseqüências daquela noite e não lembrasse que foi ele mesmo quem insistiu para não usar camisinha. Clara dispensava presenciar esse sofrimento. Era melhor continuar sonhando. Sonhando que ele se deixou contaminar por amor. Sonhando que ele sentiu um amor tão grande que tinha deixado marcas de sua passagem. Um amor tão grande que compensava o HIV para o resto da vida dele, a partir daquela noite.

Márcia do Valle

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