SEM SAÍDA

Acordava trocando os dias da semana como se estivesse num cárcere , onde o tempo não importa, parece que não passa , ou passa muito lentamente . A vida lhe era pouco cara . Arrastava-se pelos afazeres domésticos mecanicamente. Há muito desistira de uma tradução da realidade , de uma interpretação dos fatos que fizesse sentido . Atravessava esse lugar de solidão com dignidade , na companhia de um velho chinelo de pelica e do pijama de seda listrado ( uniforme de presidiária?) apenas sem um botão que , diariamente, pela manhã , ao se olhar no espelho , quase com prazer conferia sua falta . Era quando mais divagava, observando aquela imagem que era dela, a lógica dizia que devia ser dela, mas não lhe correspondia. Só refletia o que ela deixara de ser . Todos os reinos perdidos nessa suspensão entre a vontade e a inapetência .

Nem corajosa ou medrosa como antes . Tampouco sentindo a agonia da carne . Não alucinando mais nenhum gozo . Só esse sonambulismo, essa perplexidade. Nem mais a morte lhe cortejando: olhava com desdém a ratoeira com seu queijo preferido. Nem mesmo o cinismo para substituir a inocência perdida. Não recebendo mais recados da intuição mas também não acreditando no visível . Sem força alguma para revelar a farsa , mal desperta já tenta adormecer , acordar pra que ? Quando dorme sonha e quando sonha vive. A alma solta pelos paraísos , livre , voa. E vendo ou não vendo Deus , nele acredita. Desperta é atéia. Despiu-se, além dos disfarces , das vestes da ilusão de toda e qualquer religião . Mais por falta de convicção do que de estímulo . Se já fez o sinal da cruz diante de igrejas , hoje passa indiferente pelo mistério do além ; além daquelas, sinagogas e mesquitas – todos os templos – lhe interessam mais pela beleza arquitetônica. Administrar o conceito de vida já é difícil , imagina o de morte .

Emparedado desde sempre na dor seu espírito nem mais sofre, aceita com resignação o destino , fiado por alguma moura torta , alguma madrasta má disfarçada de velhinha vendedora de maçãs na selva da cidade . Muitas telhas lhe caíram na cabeça hoje oca , muitas lanças fincadas em seu pobre corpo ora exangue , flechas em seu coração . Muita faxina seus literários dedos tiveram que empreender , e eis que a Cinderela viu seus sonhos irem para o ralo no meio de tanta água e sabão .

Já amou e muito . Ainda ama . Se é que se pode chamar amor – e não , mais do que um sintoma , uma verdadeira devastação – isso que é um homem para uma mulher . Essa desterritorialização sentida . Esse dar o que não se tem e ainda assim se sentir plena . Rica e sem um tostão . Forte e frágil simultaneamente. Tão senhora e tão escrava . Deixar-se enredar em sua teia , aranha tecendo sua própria armadilha . Seu cadafalso , sua guilhotina .. Não há mente , por mais sã que seja, que não enlouqueça. Se o amor já não é uma loucura , ele a promove.

Sempre se sentiu assim , mas nunca se sentiu tão assim como hoje . Amanhã , quem sabe, mais ainda.

Ana Guimarães

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