SKATE OR DIE
Não é raro eu ir até a cozinha, botar um fio de água na frigideira e acender o fogo, apenas pra poder assistir de camarote a alquimia do liquido se transformando em vapor. Aguardo com paciência a aparição das micro-bolhas, relembrando sempre as palavras ígneas da professora de ginásio: "a água vira vapor quando chega no ponto de ebulição".
Quem entrou em ebulição com aquela experiência foi o moleque, eu, e não as moléculas. Mas hoje sei que o ser humano também entra em ebulição quando chega a hora. Costumo chamar este momento de ponto de Ícaro. Escolhi este nome porque Ícaro foi aquele que teve que criar assas pra escapar do labirinto.
Assim com o ponto de ebulição, o ponto de Ícaro nem tarda e nem falha. Só que também não chega de sopetão. Marcha com botas de lã. Vai se deslocando silenciosamente aqui e ali e quando menos percebemos, já é. A pedra vira roda e nunca mais pode voltar pro
meio do caminho. A velha ordem é devorada pela nova possibilidade. É irreversível.
Contudo, há diferença entre transgredir as regras e transcende-las. Recentemente, vi um exemplo disto no documentário, Dogtown and the Z-boys.
Dogtown era o apelido de uma região decadente e abandonada da Califórnia e que acabou servindo de casa para surfistas sem dinheiro. Eram o começo dos anos 70 e o skateboard, que havia ganhado popularidade nos anos 60 com a produção em série, saiu da moda de uma hora pra outra, dando lugar à febre do ioio.
Ninguém mais se interessava por aquele brinquedo com rodas de plástico. Porém, quis Zeus, que a falta de dinheiro, objetivos e de ondas durante o período da tarde, colocasse todos aqueles jovens surfistas de dogtown sobre as impopulares pranchas de rodinhas. Foi o inicio da revolução no Olimpo.
Vou contar o que aconteceu antes de chegar no ponto de Ícaro. Antes do Z-Boys, a maioria dos skatistas andavam como nos anos 60. Pra ter uma idéia, no campeonato de Del Mar, as manobras pareciam uma mistura de brincadeirinha de circo com saltos de atletismos. Foi então que Jay Adams entrou na arena.
O Ícaro do skate fez manobras que deixou o público e os juízes sem entender nada. Jay era muito mais do que um participante, ele era uma nova forma de vida sobre rodas, uma nova forma de ser a mesma coisa: um novo skatista. Os juízes, espantados, não sabiam como julgar, os outros competidores ficaram putos e a platéia extasiada.
São Pedro fez a parte dele e fechou a torneirinha da Califórnia. Dogtown passou por uma forte estiagem e todos os cidadãos foram obrigados a esvaziarem suas piscinas. Então, a serpente da gênese foi chamada. Sua missão era convencer os Z-boys a invadirem os quintais e fazer com que enxergassem na superfície curva das piscinas, ondas, e na tábua de seus skates, pranchas. Nascia assim o Skate Vertical.
E quando todos já estavam acostumados a deslizar pelas paredes côncavas, Jay recebeu um impulso de Ícaro e começou a subir... subir... subir... Até que a parede da piscina acabou e ele continuou subindo. Como nunca se tinha visto antes. Como uma lagarta, que ainda não é borboleta, mas também não deixa de ser. Voando sem saber o que lhe esperava na volta, no fim de todo esse giro.
Talvez seja por isto que Jay acabou se envolvendo com drogas ao invés de se envolver com a mídia. Talvez o que Jay tenha visto naquele vôo seja perturbador demais pra que ele consiga voltar a morar pra dentro de uma gaiola. Talvez seja este êxtase que esteja por trás do visceral mantra: skate or die.
E mais! Talvez seja por isto que atualmente estejamos sentindo dor nas costas e no peito. A assas atrofiadas estão voltando a crescer e o coração quer sair do labirinto.
Marcelo Ferrari