A filha pródiga

          Ela estava solta, solta, completamente, e livre, porque era forte. Mas que motivo teria, de estar forte, e de fazer-se livre? Parecia que todo mundo, e todos, no mundo, estavam contra ela. Por quê?
          Simplesmente porque era mulher, e era pobre, muito pobre. Ela não se deixava abater, e superava as dificuldades com seu desejo de viver, com sua garra para enfrentar as situações mais difíceis, dizendo:
          — Se estou viva, o pior que pode me acontecer é morrer, e tudo mais, tudo mais que puder fazer, que faço e que farei, será em função da vida, da minha e de toda outra vida, aqui, perto, como a vida dos familiares, mas também, longe, como a vida de desconhecidos, de pessoas que nunca vi; e mais ainda, porque me toca, fundo, porque estou viva, toda forma de vida, humana e não humana.
          Ela era afinal partidária de Eros, o Deus do amor, da vitalidade, da alegria, da primavera, do desejo, da liberdade, do sonho, da coragem, da solidariedade, da cooperação, amizade, da justiça, e combatia, no fundo de si, Thanatos, o Deus da morte, o qual se manifesta na tristeza, no desânimo, na opressão, na fome, na passividade, na angústia, na indiferença, na insegurança, em tudo, enfim, que colabora para humilhar Eros, o Deus da vida.
          Ela sabia, intuitivamente, que, infelizmente, é muito comum, é lugar comum, a mulher pensar e agir a partir do olhar, do ponto de vista do homem, assim como é comum que o negro tenha  uma visão de mundo típica de um branco eurocêntrico, assim como o pobre, o trabalhador, geralmente, possui um ponto de vista que não é o seu, mas o do patrão, e o latino-americano e o africano, e o asiático, e boa parte do terceiro mundo, enfim, ter um ponto de vista típico de um americano, como se fossem ou morassem nos Estados Unidos, como se estivessem de cabeça para baixo.
          Também, igualmente, ela sentia (respirava, abominava) ser uma tragédia a criança, o adolescente e o jovem incorporarem o ponto de vista do adulto, principalmente do adulto que não considera a atmosfera imaginante e sonhante da infância, a efervescência da adolescência, e a paixão arrebatadora e belamente surpreendente do jovem.
          Meu Deus, pensava ela, aprender, saber, conhecer, acontecer, dar graça, dignidade e potência à vida, está relacionado com passar a valorizar o nosso olhar, a nossa idade, o nosso nome, no que tem de único e, por isso mesmo de universal, pois quanto mais somos mais a gente mesmo, mais somos o mundo todo, quanto mais afirmamos nossa alegria de viver, mais contribuímos para afirmar a alegria de viver de toda vida, no planeta, para além do antropocentrismo, do antropomorfismo, e de toda forma de centralidade narcísica, egoísta, porque só valoriza, só enxerga, só a si, em detrimento dos outros ou das outras, porque considerar-se como central, superior, é uma forma de fazer-se partidário de Thanatos, o deus da morte, e de, assim, contribuir para espalhar a morte, pelo mundo.
          Para ela, assim, a liberdade estava na capacidade de enxergar o mundo a partir do lugar que ocupamos, pois quanto mais próximos estivermos da gente, mais consciência temos de nossos desafios, e mais solidários seremos a todo aquele e a toda aquela que precisa encontrar-se, se libertando de toda forma de opressão e, portanto, de toda lógica que diz a partir de Thanatos.
          No entanto, ela sabia que enxergar o mundo a partir dos lugares que ocupamos (já que somos muitos), não significa que devamos perceber ou nos comprometer apenas com os nossos interesses, mas que também é importante estarmos abertos a outros pontos de vista, porque, simplesmente, não somos donos da verdade (nem nós e nem ninguém), e, fundamentalmente, é através da abertura para um ponto de vista diferente do nosso que nos fazemos melhores para a gente mesmo, por mais estranho que pareça tal afirmação.
          Para enxergar o mundo através de Eros, através de seus desafios, ela recusava construir uma imagem negativa de si, e sempre dizia que, sim, que ela podia e pode e poderá fazer e realizar todos seus sonhos, principalmente aqueles que os outros diziam que ela não daria conta, porque sua dívida era com o risco no horizonte, a beleza, a leveza.
          Por isso ela não recusava o difícil, mas, pelo contrário, o buscava, porque sabia que só o difícil é estimulante, porque a tornava mais forte, e mais cheia de Eros, e de primaveras.
          Por isso, ela, ao escrever, ao ler, ao pensar, ao ver, ao sentir, ao imaginar, ao falar, ao amar, ao andar, ela sempre procurava se inventar, e recusava ser inventada, sempre procurava fazer, ao invés de ser feita, sempre procurava construir, ao invés de ser construída, sempre procurava, se perguntando, buscar, procurar, viver, mesmo apesar de tudo, sem reclamar, escrevendo o desafio das desmedidas e dos impossíveis.

Luís Eustáquio Soares

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