BLECAUTE

“...No dedo um falso brilhante, brincos igual ao colar
E a ponta de um torturante band-aid no calcanhar...”

(Dois pra lá, dois pra cá- João Bosco e Aldir Blanc )

          Ligou o aparelho e começou a cantarolar, junto com o CD:

          “Boneca cobiçada, das noites de sereno, seu corpo não tem dono seus lábios tem veneno”...

         A garganta fazia um ligeiro tremido no final, enquanto braços acompanhavam a dança dos quadris, sensualmente.

         Fiquei pensando onde arranjara estas músicas antigas e bregas. Talvez alguém do meio preparasse para ela, dos LPs guardados nas caixas, uma das muitas empilhadas na mudança inacabada..

         – Bonito, né? Já não se faz mais musica como antes...

         – Verdade – menti.

         Apanhei o maço de cigarros. Fazia tempo que a gente não se via. Desde quando eu era apenas uma menina de uniforme e ia escutar suas histórias improváveis.

         – Mariinha não mora mais comigo... – pareceu ler meus pensamentos – Se amigou com um cobrador da linha Castelo/Leblon...

         A elipse sublinhava o desprezo. Que se danasse. Sonhara tanto para aquela filha. Cobrador. Que ironia. Ia cobrar todas as suas culpas...

         Olhei as moscas sobre o prato de bolo coberto com tampa de tela. Como elas, meus pensamentos vagavam.

         – Cadê o Maurity?

         Ela avaliou o esmalte descascado das unhas antes de responder:

         - Aquele traste? Não faço a menor idéia.

         Lembrei do Maurity chegando do trabalho, cansado, pasta na mão. E ela explodindo de vida, tão nova, a filha da minha idade, adolescente. Maurity desligava o rádio e começava a briga.

         “Boneca cobiçada... “ os quadris ondeavam outra vez.

         – Lenira... posso te pedir uma coisa?

         – Claro, como sempre.

Riu com a sugestão daquela cumplicidade. Um pouco da antiga beleza reapareceu no rosto iluminado.

         – Eu sei. Tu sempre foi dez. Mas é outra coisa, agora é outra coisa... Não fala com a Mariinha que me encontrou aqui – apontou com o braço roliço a velha pensão. Ela pensa que estou morando na Barra.

         – Barra? – não pude evitar o riso – Ela não te visita?

         Nova consulta ao esmalte descascado.

         – Não. Sou eu que não quero. Não dou endereço. Sei dela pelos amigos e ta bom demais.

         A pergunta engasgada entre nós finalmente explodiu:

         – E o Zé Luis?

         Pela primeira vez, ela quebrou. Ficou calada enquanto a tarde agonizava. As sombras se abateram sobre nós até parecer que nunca mais ia ser ontem de novo.

         Acendeu o abajur, apanhou meu maço, tirou um cigarro, me ofereceu outro. Ficamos olhando a fumaça:

         De muito longe ouvi sua voz:

         – Não sei. Acho que casou, ficou bem de vida. Filho da puta.

         Relembrei os bilhetes que eu levava, o medo, a culpa. Se Mariinha descobrisse... E o Maurity?... coitado, tão bom. Daquele tipo que serve pra ser pisado. Um dia cansou. Será?

         No CD, a voz do passado ainda gemia: “ boneca cobiçada das noites de sereno”...

         Mas ela não dançava mais.

         Mergulhada na penumbra cega, repetia a letra: “se queres que eu sofra... é grande o teu engano...”

         Acabei o cigarro, esmaguei no cinzeiro, me despedi:

         – Foi bom te ver, Jurema, de verdade. É gostoso reencontrar a turma do passado.

         Tentou recuperar um pouco da antiga dignidade, da alegria esfuziante de antes:

         – Também gostei, menina, você tá bonita, sempre foi... parece madame... Quer um pedaço de bolo?

         – Eu adoraria – menti novamente – mas estou com pressa. Fica pra outra vez.

         Fingiu que acreditou:

         – Claro, uma outra vez... dá um beijo na minha filha, se você encontrar.

         – Dou sim, claro.

         – Mas não fala de mim... a luz do abajur colocava imensas olheiras negras sobre as maçãs.

         – Pode deixar.

         Saí com a garganta apertada e tomei um táxi para o Leblon.

         Abri a porta. A penumbra do apartamento me causou mal-estar. Acendi a luz.

         Meu marido me pegou por trás e beijou minha nuca.

         – Como ela está? Perguntou contra o meu ouvido.

         – Acabada.

         Ficou em silêncio e me virei para ele.

         – Tive pena, Zé Luis.

         Ele tentou brincar: quem tem pena é galinha...

         Mas eu só via a escuridão, o abajur apagado dentro de mim.

Maria Helena Bandeira

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