ENREDO

A algazarra daqueles poucos dias era sempre o melhor de sua vida durante o ano, em todos os anos-solidão. Nem aniversário (quem cantaria “parabéns a você”, homenageando um homem abandonado?), nem natal (onde os parentes?), ou qualquer outra data comemorativa. Nas ruas do bairro, apenas quando fevereiro, a única ocasião em que alcançava alguma felicidade real. Embora, pés no chão sempre os teve, soubesse jamais ultrapassaria a barreira dos três dias o prazer . No resto do ano, cinzas. Conseguia deslembrar a tristeza sob controle que era viver só, irremediavelmente distante da família, acompanhado apenas de sua alguma cultura, de sua dúzia de escritores; o macarrão instantâneo e insosso, lavagem disfarçada. Sempre o mesmo cardápio. Mas era o que sabia fazer junto ao fogãozinho, duas trempes; a incompetência para persuadir mulheres, de modo que a masturbação era sua única fonte de orgasmo. Como eram mesmo os sabores dos aromas nas curvas femininas? Aos porcos esta vida imunda! Gostoso era ouvir os repeniques atravessando a epiderme, o baticum dos tamborins acelerando o coração machucado e, acima de tudo, sambar à vontade. Não possuía a exata consciência disto, mas a dança era sua melhor maneira de esconjurar os inúmeros satanases que o parasitavam. Mais eficiente do que o álcool de ordinário utilizado. Todos os anos travestido da mulher e meretriz que sempre o habitara e que vez por outra lhe exigia espaço para manifestar-se. Cujos trejeitos, porém, quando à luz do sol, seu lado masculino abafava. A muito custo. E se em todo santo carnaval o homem quase não tinha voz, especialmente naquele emudecera: havia alcançado um dos mais inconfessáveis desejos, ser porta-bandeira da agremiação da qual fora um dos idealizadores. Como não possuía capacidade para nenhum instrumento, sempre acompanhava o Bloco São Longuinho das Perdidas nas últimas fileiras. A fundamental aguardente, garrafa cheia, numa das mãos.

Nem mesmo a primeira das inúmeras encruzilhadas havia sido vencida pela multidão, pequena ainda. Eram aqueles subempregados ou vadios que, fiéis em séquito profano, sempre davam consistência à sopa rala que eram as vozes em uníssono dos ritmistas, fazendo com que, ano após ano, quase o bairro inteiro saracoteasse na cadência dos sambas-enredos. Mas algo incomum estava acontecendo. Sentia, inobstante convicto encontrar-se no mesmo passo de todos os outros componentes, o Bloco cada vez mais rápido. Cada vez mais longe. Tanto assim que em poucos minutos já não escutava nem mesmo o surdo. A fantasia Pomba-Gira e a bandeira pesavam, mas tentou correr, reintegrar-se. As sandálias femininas não eram obstáculo, acostumado pela volúpia de usá-las uma vez por ano ou ocasionalmente quando muito solitário ou induzido pela vagabunda que nele havia. No entanto, os bares e os postes e as casas (mas não a rua Brasileiros da Silva) passavam por ele sem que avançasse centímetro rumo ao grupo. Vários rostos conhecidos, minutos antes mais ou menos ocultos pelas máscaras e dançando dentro ou fora do cordão, faziam o caminho inverso. Passeavam, comportamento e roupas próprios de um dia igual a qualquer outro, tranqüilas. Ou enlameando a vida alheia, ou cê viu us dois golão di Fulanu nu crássico di onti?, ou us ôinsbu daqui num cumpri us horáriu neim a podê di reza. Ele tentava cumprimentar alguém, pode me esclarecer o que está acontecendo?, mas não havia um quem respondesse. Subitamente ignorado no bairro onde nascera e toda a sua vidinha fora construída. Muitos estranhavam aquele homem, cachaça, bandeira sem mais aquela, travestido de Pomba-Gira . E eram vizinhas, notórios alcoólatras, garotos que invadiam seu quintal a fim de resgatar pipas...

— Dona Generosa, chega aqui! Seu Adroaldo, faça o favor! Ei, Lelé! Você não me conhece mais, caramba?!

Indignado, palavrões abundantes e dirigidos a todos os que passavam por ele sem ao menos um aceno ou outro gesto educado. Não ouviam mesmo ou era fingimento? Arrancar as sandálias de salto, atirá-las naqueles falsos, pretensiosos sem um pedaço de trapo para cobrir a bunda durante o sono. O espanto o impedia: eles fossem neblina que aos poucos se esvai, lentamente desapareciam. A cada passo. Junto com os elementos em torno. Tudo, exceto a Brasileiros da Silva, evaporava. Garrafa ao chão, câmera lenta, sem que ele se desse conta. Aparvalhado. Testa franzida, boquiaberto, raciocínio obstruído pelos fatos, ao mesmo tempo em que as coisas e as pessoas iam deixando de existir. Mas a garrafa não se estilhaçara. Quando se apercebeu no vácuo, apenas ele e o caminho até então utilizado como passarela, quis gritar. Meio assombro, meio horror. Que assumiu proporções sem medidas quando a rua começou a esticar ininterruptamente seu cumprimento, fazendo curvas e ladeiras e subindo e descendo. No vazio e no silêncio absolutos. Fechasse-abrissse os olhos por um ou dois instantes tudo retornaria ao normal? Boa parte do líquido escorreu e no asfalto, à suas costas, a poça desenhou uma forma ligeiramente humana.

Quando fez menção erguer as pálpebras, esperança enxergar apenas a normalidade, ouviu muito nitidamente o vozeirio grave de tambores. Próximos. O Bloco voltando? Virou o rosto e parte do tronco num súbito, o caos estava completo: a mesma percussão de segundos antes inexistia, tudo à sua frente era como uma enorme pintura impressionista colorida em excesso e apenas num plano dimensional. Onde a moldura? Pergunta sem resposta. Estranho... pois se estava conseguindo discernir até a textura da tela!... E agora, fazer o quê se atrás, provavelmente ainda a rua enlouquecida e se autoconstruindo no vácuo? Seguir, embarcar numa pintura, e me transformo em personagem, desenho imóvel? Ouvidos atentos, nenhum vestígio do pessoal. Tampouco o silêncio zunzumbizava.

_ Miséria! É alguma brincadeira, Deus?

Da garrafa caída a aguardente entornada, e dela... Pasmo num crescendo de quem a única pretensão era, naqueles dias para os quais o calendário ordenava felicidade sem cabrestos e divertir-se até o esgotamento tomar conta do corpo... e dela fez-se um mestre-sala. Caprichadíssima vestimenta, dançarino impecável, gingando à sua volta. Mas o rosto semicoberto por varejeiras às centenas, que só não ocultavam onde deveria estar a boca. Ali uma caricatura tosca, improvisada à base de hidrocor rosa, arremedo dum sorriso escancarado e com todos os incisivos, caninos, molares... Esta figura mais parece excremento das vísceras infernais!

— São Longuinho das Perdidas, orgulhosamente, vem apresentar a história de um homem e sua mente que só sabia viver de sonhar...

— Como pode cantar o samba-enredo do Bloco, se nem mesmo boca possui? Aliás... poderia, por favor, dizer quem é você, coisa anormal?

— Eu? Sua aguardente, quem mais? Não alcançou ainda, meu pobre infeliz? Aquela mesma: minimiza as dores provocadas pelos infortúnios há anos cavalgando em seu cangote. Mas, enfim... nenhuma estranheza: desde sempre teve vocação para jumento; aquela mesma: potencializa desproporcionalmente os raros momentos alegres. Mas, chega! Vamos ao que interessa, de fato. Por favor, adentre. Medo por quê? Segura firme minha mão enquanto atravessa a fronteira entre o vácuo e as cores. Cautela com a altura dos saltos. Erga um pouco a saia-cigana. Calma, assim vai exibir a calcinha que você costuma usar lá uma vez ou outra, mesmo sem carnaval. Olha a depravação! Encarcere em definitivo essa vadia que nunca lhe deu sossego! Agora entra.

Todas as palavras ditas sem esquecer o balé característico dos mestres-salas: trejeitos de corpo e pernas, mesuras, esplendor todo plumas e paetês. Sacudir as cores quentes do leque. Coreografia bem ensaiada estilizando o ato de proteger a imitação de porta-bandeira. Ainda que em nenhum momento a criatura tenha ao menos tentado esclarecer qual a feitiçaria utilizada para cantar e falar, porquanto sua boca não passava duns traços rascunhados na pele, impossível resistir ao poderoso fascínio que o coisa exercia sobre ele. Certamente a mulherzinha fácil de sempre permitindo apaixonar-se outra vez pelo primeiro macho que surge? Sim, mas... aquilo seria mesmo um homem? E não fosse? Desimportante, na verdade: estava encantado e resolvido a acompanhá-lo, a entrar naquele quadro misterioso. Quem sabe agindo assim encontraria o Bloco, ou esclarecimentos para tantas impossibilidades a comer-lhe os miolos aos poucos.

Bastou o mestre-sala tomar levemente sua mão e sugerir, gesto doce, beijá-la próximo ao anel de falso rubi, gesto comum a uma espécie de cavalheiro já extinta nos dias quotidianos, no intuito de fazê-lo vencer a fronteira entre ambas as terras... Foi o quanto bastou para que ele sentisse um forte incômodo nas carnes do corpo travestido. Alguns músculos estremeciam, suores frios , ereção, uma absurda certeza de sangue congelando nas veias. Ai, que horror, vou desmaiar! Necessidade urgente beber álcool e mais álcool até a última gota, e só então percebeu a garrafa vazia no chão. Inteira. As artérias dos pulsos e pescoço latejando como o sangue quisesse romper a carne, jorrar.

— Calma... tranqüilidade... Não é nenhum fim de mundo. Ainda. Pode vir. Absolutamente normais em pessoas com o seu psiquismo , estes sintomas físicos. Mas existe cura. Tão rapidamente quanto se manifestaram, eles podem desaparecer. Entra, e tudo estará colorido. Vem.

Houvesse alguém atento à cena, concluiria, sem muitas margens para dúvidas, eram inseparáveis amigos desde talvez a meninice, posto que perdera todo e qualquer fragmento de medo ou repugnância. Ao contrário: uma serenidade... Experimentava uma delícia nas vizinhanças da paixão mais arrebatadora. Até mesmo o nojo pelas varejeiras parecia inexistir. É que sua metade mulher, pouco ou nada exigente, adorou a gentileza, o cavalheirismo daquela aberração viva. Ah, pudesse beijá-lo... seria a maneira perfeita de agradecê-lo. Não... melhor manter o silêncio, falar em pensamento e com os olhos. Talvez ouça. Está muito bem... você me convenceu, vejamos se entrando aí a minha vidinha passa a merecer algum vintém. Fascinação, entrou. Como se nada. Mas quando as sandálias pisaram o interior da tela impressionista sem rubrica de autor, muito claramente a ele parecia não ter saído do lugar: leve... leve... Em excesso. Mágica? Eu não mais carne e osso e frustrações? Impossível! Deixara fugir o norte, e justamente por isso aborrecido. Palavrões em tom de sussurro. Volveu o rosto num muxoxo. Notou, além da rua aumentando infinitamente seu tamanho e abarrotada de curvas, uma cena cujo significado não conseguia alcançar: próximo à garrafa de aguardente, fora do quadro, seu corpo travestido e desmaiado. Deus Santíssimo! Então... eu aqui e ao mesmo tempo lá?!... Estou... espírito neste cenário feito a pinceladas dalgum autor anônimo? Mas se aqui estou com a mesma roupa, a mesma Pomba-Gira!... Queria esclarecimentos categóricos do mestre-sala, mas cadê? Sumira. Sumiu?! A loucura deve estar tomando conta...

Instrumento por instrumento, escutava muito nitidamente toda a bateria. Das notas musicais graves às agudas. Repeniquetamborimrepeniquetamborim... Surdão! Ganzá! Ganzá! Tamborim... Ganzá! Chocalhochocalhochocalho. Como era gostoso sentir aquela música... Parecem estar aqui, à minha volta! Sorriu alegre e sereno ao distinguir, adiante, numa encruzilhada, os foliões, os ritmistas, o samba-enredo cuja letra ele havia produzido sozinho nas noites mais embriagadas dos quatro ou cinco meses anteriores. Se Paulo Mendes Campos me permite o uso do neologismo criado por ele... a sozinhez, essa mulher que ama a si mesma e a mais ninguém, ao menos conseguiu inspirar-me. Disputou contra outros cinco letristas, velhas raposas, e só venceu porque a diretoria não permitiu politicagem de bastidor. E o melhor: poucos ensaios e logo os entusiastas do samba no bairro já estavam cantando minha letra e a melodia que um colega, majestade no cavaquinho, criou.

— Até que enfim, achei!

E foi ao encontro de todos, em direção à encruzilhada. Sambando e cantando, engolido pelo prazer, rodopios. Uma das mãos na cintura. O mundo estava feminino e, conseqüentemente, melhor. Até a bandeira do Bloco era felicidades. Euforia além do normal, sequer notou duas inconsistências: aquele entroncamento, de fato, nunca existiu no bairro; não apenas ele fazia movimentos circulares: também todas as coisas em redor, em sentido oposto ao seu. E num ritmo acelerado. Quando chegou, outra vez as peças do quebra-cabeça não se encaixavam: nenhuma viva alma. Fossem colegas do Bloco ou foliões. Havia, pelo contrário, enorme cetim vermelho e sobre ele o seu corpo desfalecido. Mas que brincadeira é esta? Meu corpo não estava do outro lado deste quadro, caído na rua que só fazia crescer aleatoriamente? Vários alguidares em torno. Alguns com labaredas altas, outros com farofa; champanhes, rosas, muitos maços abertos de cigarros caríssimos, contas pretas e vermelhas formando colares. Irritado, atirou para longe a bandeira do Bloco. Mas ela subiu, navegou no ar, foi às nuvens pinceladas, desceu, e acobertou seu corpo inconsciente no despacho. Sem muito mais a fazer, riu do destino irônico. A intenção era um sorriso desalento, mas foi transformado em segundos numa gargalhada tétrica.

— Acorda!

— Heim?! O que faço aqui, deitado no asfalto?

— Dormiu. Até sonhou. Canseira de tanto esperar o Bloco sair?

— Deveriam ter me chamado.

— Preferimos não. Lembra que estávamos só esperando nosso mestre-sala chegar? Pois é. Ele foi encontrado com vários tiros pelo rosto e sem os lábios naquele bananal logo na entrada do bairro. Só há pouco conseguimos substituto. Agora levanta, tira o que está sujo em sua porta-bandeira. Já vamos sair. O itinerário de sempre: daqui entramos na Brasileiros da Silva, passamos em frente à casa daquele artista plástico que é macumbeiro, damos a volta pelo bairro e terminamos aqui. Falar nisso, esta roupa preta e vermelha, combinando com as sandálias... você ficou lindo, sabia?

— Lindo não: lindérrima, querido...

— Ih... Incorporou a personagem, é? Cuidado.Você acaba gostando... essas coisas pegam. Atenção, bateria do São Longuinho das Perdidas! Um, dois e...

Eduardo Selga

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