O TURBILHÃO LENDÁRIO

N ada de melhor nos terá acontecido, naquele ano, do que as nossas férias na baia de Pemba, no norte do país. Eu e o mano Beto haviamos passado de classe e o kôta prometera, logo nos primeiros dias do ano, umas férias na casa do avô Omar, em Paquitequete . Assim que ficamos de férias na escola partimos de Maputo para Pemba, de autocarro, na companhia da tia Awa que viera nos buscar à capital. A viagem fora cansativa mas, ao mesmo tempo, divertida, desde o terminal do TSL, na Avenida das FPLM , até ao controle de Pemba, no bairro de Mahate. Dali partimos de táxi com destino a casa do avô Omar, no bairro de Paquite, como os pembenses lhe chamam, onde ficariamos quinze dias a gozarmos as férias por entre o marulhar das ondas do Índico. Enquanto nos dirigíamos para a cidade, que distava uns quilómetros, o taxista ia-nos amostrando a paisagem dominada, principalmente, por embondeiros e algumas árvores menos frondosas e arbustos vulgares. Do Alto-Gingone, um bairro periférico do aeroporto local, vimos a “esteira” azul do mar deitada manjestosamente ao longo da baia, parecendo um enorme anzol feito de água. Mas, para o lado direito da estrada que nos conduzia, emergia uma nova cidade próxima da faixa de areia branca que ladeia quase toda a cidade: era a famosa praia do Wimbe, um enorme potencial turístico da região norte do país. No entanto, pouco tempo depois desembocámos na cidade e passámos pela artéria principal do bairro de cimento. Enquanto o carro deslizava na estrada asfaltada, vimos de longe os bairros de Cariacó, Natite e Ingonane e, mais tarde, rumamos pela marginal até ao bairro costeiro de Paquitequete, na zona de Kumilamba, onde o táxi parou em frente da casa de um dos vizinhos do avô; descemos, caminhando depois por uma rua estreita que nos levou direitos ao destino. Ao chegarmos, fomos recebidos com alegria e, dos familiares e vizinhos, recebemos apertos efusivos de mão, à moda dos makimuanes.

Sentado na esteira de palha, na companhia do mano Beto e de outros garotos curiosos que se aproximaram ao chegarmos, pus-me a contemplar a casa que era feita de pau-a-pique, rebocada com matope e coberta de macuti . O quintal era de bambú suportado por diversas estacas sólidas provenientes de Ulonto, lá na outra margem da cidade. Depois de todo o cerimonial que um visitante merece, não aguentei mais: ergui-me da esteira e fui para a frente da casa, onde fiquei olhando para o mar azul e ouvindo o som das ondas misturado com o som dos búzios. Durante muito tempo fiquei ali imóvel e boquiaberto, vendo ao longe pequenas embarcações à vela, pescadores puxando redes carregadas de peixe, barcos a motor transportando passageiros para o Ibo, Mocimboa da Praia, Quirimbas e outros pontos da Província. Depois de um tempo, deitei o olhar para a margem onde me encontrava e fiquei apreciando a beleza das ondas e assistindo ao espectáculo dos carangueijos que, espantados pelo marulhar das ondas, fugiam em debandada ao encontro dos seus esconderijos que raramente falhavam.

Entretanto, a minha tranquilidade naquele sítio não tardou a chegar ao fim. Um garoto aproximou-se interrompendo a minha concentração na observação da natureza e, com uma ponta de timidez, informou-me:

•  Precisam de ti.

•  De mim? – Interroguei-o sem desviar o olhar do mar.

•  Sim.

•  Aonde?

•  Lá no quintal.

•  E quem precisa de mim? – Quis eu saber, olhando os seus olhos.

•  Avô Omar. – Replicou ele, desviando o olhar.

•  Voltou?

•  Sim. – Sorriu. – Faz um tempo.

Saí dali e fui até ao quintal. “escoltado” pelo miúdo, que não parava de me lançar olhares furtivos, e, ao chegar, saudei o avô e fiquei conversando com ele desde o rpincípio da tarde até ao anoitecer.

Passados alguns dias e após termos pedido autorização ao avô, eu e mano Beto, e outros garotos do bairro, fomos à praia brincar. Era sábado; a praia estava repleta de banhista e os pescadores ainda não tinham voltado do mar. Ficámos na margem apanhando búzios, construíndo castelos de areia, perseguindo caranguejos, brincando com garrafas-azuis e ajudando os pescadores a puxar as redes e a tirar da água os pequenos barcos à vela. Foi neste dia que ouvi dos nossos novos amigos a lenda do turbilhão Nunumuana, que fica a algumas milhas da Baía de Pemba. Fiquei curioso e ao mesmo tempo cheio de medo. Naquele dia não saí de noite para ver o mar sob o luar e muito menos para contar quantos segundos passam entre o acender alternado dos faróis das rochas de Ingonane e Ulonto.

Um certo dia, estando eu na companhia do avô Omar a pescar na zona portuária da baía, interroguei-o acerca da veracidade da misteriosa lenda que corria de boca em boca entreos garotos pembenses. Ele garantiu-me a veracidade da história e prometeu contar-me tudo, noutro dia, porque a história era longa e complicada.

Os dias foram passando, im atrás do outro, e todas as noites ouvíamos histórias diversas contadas pelo avô, mas, curiosamente, o kôta não se lembrava de contar a história do turbilhão. Nisto, numa certa noite de luar, décimo terceiro dia da nossa estada em Pemba, a curiosidade obrigou-me a pressioná-lo a contar a história prometida, pelo que o velho me respondeu:

•  Tudo bem. Eu vou contar, já que insistes tanto.

Acendeu um tabaco, fumou em silêncio com o olhar perdido num ponto indefinido, como se estivesse a pensar em algo guardado nas profundezas da sua memória, sorriu perceptívelmente fazendo animar a sua face sulcada de profundas rugas e, por fim, começou a narrar a história.

•  Reza a lenda que foi há muitos anos, muitos anos mesmo – Repetiu com firmeza, a ponto de acordar o mano Beto que já apanhara uma soneca. – que um barco transportando uma terrível curandeira e seus ajudantes naufragou, numa zona a algumas milhas da nossa costa, e o naufrágio matou todos os ocupantes.

•  Ninguém se salvou? – Quis eu saber, curioso.

•  Ninguém! – Disse, meneando a cabeça e pegando, ao lado do tronco onde estava sentado, numa “ exportação ” de nipa , que de seguida levou aos lábios, e bebeu um golo pelo gargalo. Depois de pousar a garrafa no chão, avivou a fogueira que ardia no centro da roda humana, feita de miúdos do bairro ávidos de ouvir histórias antigas transmitidas oralmente de geração em geração, e em seguida continuou: - Daí, os náufragos transformaram-se em fantasmas ferozes, a ponto de consiguirem, com a ajuda de um turbilhão acompanhado de ventos tempestuosos, imobilizar um navio enorme. A partir daquele dia, todos os peixes da baía passaram a ser deles e, quem pescasse à noite, era frequente deparar-se com fantasmas recolhendo redes e libertando peixes das redes e dos anzóis. Foi nessa época que o peixe, o alimento principal dos nativos, começaram a escassear e os pescadores passaram a morrer em massa, vítimas de misteriosos ventos fortes.

Estremeci, escutei o som do mar e olhei em redor do quintal iluminado pela lua que derramava a sua luz sobre todos os bairros da cidade. Depois, apurei os ouvidos e fiquei ouvindo a história que o avô contava, gesticulando e falando num tom de voz carregado de uma miscelânia de emoção e terror.

•  Então, os nativos da baía reuniram-se para resolver o problema e, para tal, chamaram o curandeiro Amisse que, com a ajuda dos ancestrais, conseguiu falar com a curandeira náufraga. Durante o diálogo ela proibiu a pesca nocturna, o uso da rede de malha fina, e o derramamento de líquidos estranhos nas águas e, além disto, ordenou que todos os barcos que passassem pela zona do turbilhão atirassem para o mar alimentos diversos, de preferência carne fresca, como forma de pagar tributo pelos peixes apanhados na baía. Estes alimentos serviam para alimentar os peixes nas profundezas do mar, para melhor se reproduzirem e crescerem saudáveis.

O kôta tossiu três vezes interrompendo a locução; Bebeu um trago da sua “primeirinha”, e prosseguiu:

•  Quem não obedecesse ao que Nunumuana dissera, uma gigantesca massa de água que se revolve rapidamente cobri-lo-ia imediatamente e, se se tratasse de um barco naufragaria, e os seus ocupantes transformar-se-iam em fantasmas imortais e, depois, ocupar-se-iam de vigiar o mar e impôr a ordem quando se julgasse conveniente.

O velho fez uma pausa. Puxou do tabaco enrolado num pedaço de papel de caqui, e aspirou voluptosamente o fumo que invadiu temporariamente o espaço da roda feito pelos miúdos que o escutavam com paciência e manifesto interesse. Depois, enterrou na areia a ponta acesa do cigarro e logo voltou ao fio da história:

•  Na verdade, após a cerimónia com o curandeiro, toda a gente passou a respeitar e a cumprir rigorosamente o que Nunumuana dissera e, em consequência disso, os peixes multiplicaram-se na baía, as mortes dos pescadores diminuíram drasticamente, e os nativos e outros habitantes passaram a viver felizes.

O Kôta calou-se e fez-se um silêncio absoluto durante o qual pude ouvi-lo a ressonar como um contrabaixo desafinado. Olhei para os garotos à minha volta, vi que ainda se achavam atentos como mochos e, por fim, tossi propositadamente. O velho assustou-se, acendeu novamente o tabaco que havia enterrado na areia e libertou uma grande fumaça que o fez tossir vezes sem conta. Após um tempo bebeu de uma só vez a sua “ primeirinha ”, entoou em Kimuane uma canção sobre a lenda e, por fim, ergueu-se e começou a dançar enquanto o acompanhavamos em côro, batendo palmas.

Dois dias depois, eu e o mano Beto tomámos o autocarro de volta para Maputo, onde chegámos ao terceiro dia. Passada uma semana, um impulso não me deixava e, consequentemente, impeliu-me a escrever estas linhas como forma de imortalizar a lenda e dar a conhecer a toda gente como os pembenses passaram a valorizar e a preservar o mar e os seus recursos.

Francisco Absalão

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