O Conto Um

Eu estava sentada em minha cama, recostada nos travesseiros, talvez há uns três ou quatro dias, não podia afirmar com certeza, mas algo me dizia que algo não estava certo. Eu sei muito bem como eu sou, e por isso, não duvidaria das minhas intuições. E aquela intuição de que algo estava errado comigo não parava de me assombrar.
Não queria levantar da cama, pra dizer a verdade nem tentei. Era como se eu desejasse estar e ficar ali para sempre.
Ao meu lado, na cama, o controle remoto da tv e um bilhete com data de quatro dias atrás. Agora eu tinha certeza de quanto tempo estava ali. No bilhete estava escrito: “Quando acordar não se preocupe, você vai achar que algo está errado, mas isto não é verdade. A verdade que você talvez não queira aceitar mais tarde, depois de entender tudo isso, é que você^escolheu estar onde está agora, Não há nada que se possa fazer para mudar isso. Não se preocupe, uma hora dessas, você vai entender a razão disso tudo. Voltarei em breve. Assinado: Eu!”
Ao ler a última linha, fiquei petrificada, apavorada. Minha certeza estava provada naquele bilhete. Eu realmente não tinha noção nenhuma do que havia acontecido e algo estava realmente errado, ou comigo ou com a realidade. Restava agora saber o por quê!
Reconheci a letra do bilhete assinado por mim mesma. Meus olhos arderam e minhas mãos tremeram quando o peguei de cima da cama e o amassei. Não podia ser verdade tudo aquilo. “Mas, o que era verdade afinal?”
Ia jogar o bilhete pela janela, mas algo me impediu. Ouvi um grito dentro de minha cabeça, abri novamente o bilhete e tinha algo escrito no verso: “Ontem você, hoje apenas um fragmento de tudo.”
Novamente um grito ecoou dentro de minha cabeça, e comecei a chorar. Chorei por algumas horas até adormecer novamente. Quando acordei estava serena, como que deitada em um jardim macio. Sentia o calor morno dos raios do sol em minha pele e até achei que era verdade que havia levantado da cama e caminhado até lá fora. Senti as mãos macias do meu marido acariciando meus cabelos, passando as mãos entre meus seios, me beijando a nuca. Não queria que aquele momento terminasse jamais. Há muito tempo que não o sentia dessa maneira, aliás, não o sentia desde o dia em que...
Meus pensamentos foram arrancados de dentro de mim como um trovão, meu corpo estremeceu, segurei com força na cama para não cair. Eu sentia que algo estava acontecendo comigo. Talvez uma crise convulsiva, como há muito eu não sentia. Ainda entre o medo de acordar e o calor de um sonho maravilhoso, abri os olhos. Meu corpo se debatia na cama e estranhamente eu não podia fazer nada para controlá-lo. Procurei ao lado no criado mudo, o remédio que eu sempre tomei nesses casos. Com dificuldade consegui alcançá-lo e tomei três comprimidos de uma única vez. Depois de alguns minutos já estava novamente segura.
Ouvi vozes no corredor, eram de minha filha e do meu marido. Sorri, porque já era tarde e eles não me acordaram na hora de costume. Dei um pulo da cama e fui encontrá-los na cozinha, já com o café preparado. Beijei-os e peguei minha filha no colo. Levei-a até a cama novamente e brincamos um pouco antes de tomarmos o café da manhã. Meu marido estava especialmente bonito naquela manhã, disse a ele, que emendou dizendo que era por causa do domingo. Ele sempre dizia que no domingo o humor está em alta e todos estão mais bonitos e alegres.
Depois do café iríamos sair para um piquenique, pedido insistente de minha filha.
Já no carro, todos acomodados, partimos em direção ao interior, onde as cidades são mais aconchegantes. Sabíamos exatamente onde parar, e íamos cantando nossas músicas favoritas no caminho.
De repente acordei, ainda ouvindo aquela canção. Não estava no carro, nem com minha filha e marido, mas sim, deitada na cama. Olhei para o teto e pensei comigo mesma que não havia motivo para sair dali. Senti que algo estava se transformando dentro de mim. Uma dúvida estava clareando, tomando forma de resposta, mas muito tênue ainda.
“Você vai querer voltar. Vai querer desistir de tudo, mas não há mais nada que possa fazer. A escolha foi sua. Não desista de tentar encontrá-los, ou quem sabe, talvez, nunca mais revê-los”!
A frase ecoava em minha mente e não me deixava dormir. Um misto de dúvida, pavor e resignação tomavam conta de mim. Tão contraditória era a minha situação agora. Eu me perguntava “por quê?”
Ainda não fazia sentido as respostas que encontrava. Ainda não podia entender a verdade que eu mesma escondi de mim.
Meu corpo começou a tremer novamente, menos violentamente. Eu senti agora que podia controlar aquela situação. Concentrei-me e pensei nos dois.
Silêncio!
Por alguns minutos, um grande silêncio invadiu o quarto, a casa, o mundo lá fora.
Eu deixei que ele tomasse conta de mim também. Fechei os olhos e então fui invadida por mil sons, mil imagens, a mil por hora. Era como se minha vida passasse toda em milésimos de segundos, e nesse ínfimo tempo, eu pude entender tudo.
Cada momento de minha vida, um capítulo derradeiro, que me levou ao meu destino atual. Peguei o bilhete todo amassado que ainda estava ao meu lado na cama e tornei a ler. Agora eu podia entender.
Só havia uma verdade agora. Uma única verdade, não pra ser entendida, mas aceita.
Decidi que era hora de levantar. Apoiei-me na beirada da cama e pus os pés firmes no chão. Caminhei lentamente até a janela para ver pela última vez a luz do sol, as árvores, as flores. Sentir o cheiro da fumaça dos carros e o barulho do trânsito. Era o suficiente por agora.

Sentei novamente na beirada da cama, ao lado do criado mudo e peguei o remédio das convulsões. Não eram remédios para curá-las, mas calmantes fortíssimos. Lembrei-me então que tomei seis comprimidos há uns dias atrás. Achei que me fariam encontrá-los, onde quer que eles estivessem. Eu decidi sozinha que já não havia motivo para continuar a viver sem os dois. Ninguém saberia o que aconteceu até acharem meu corpo deitado na cama. Aí seria tarde demais e eu já estaria à procura de minha filha e marido. Mas eu não sabia que a realidade se estenderia para além das coisas da vida material. E assim como os perdi enquanto viva, também os perdi agora.
Meu suicídio foi às 23:46h do dia 20/03/06. Causa da morte: parada cardíaca.
Fiquei por muito tempo procurando um motivo para aceitar o que havia feito!
Escrevi o bilhete para que me lembrasse de não se arrepender e aceitar as coisas que viriam. Por um tempo não adiantou até que fui tomada por essa luz incrível que agora me acolhe e restaura. Minha filha e meu marido, morreram dias antes em um acidente de carro quando íamos para um piquenique. Só eu sobrevivi, para meu desespero. Renunciei a tudo e a todos, descartei a vida que ainda me restava, pois não havia mais motivo para vivê-la. Não sou mulher de aceitar a solidão. Não sou forte sem eles. Agora estou à espera de um novo recomeço, uma nova oportunidade para desfazer as coisas que podem ser desfeitas. Mas isso, não me cabe decidir. Não agora!

Alexandre Costa

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