Sabedoria materna

Era uma quarta-feira, meio dia, meio nublado, meio frio, mas o noticiário dizia que o dia seria ensolarado. O menino sai da escola com sua mochila azul-marinho combinando com a bermuda azul do uniforme. Meio melancólico, o menino já estava acostumado com sua família dividida ao meio, de um lado a mãe, do outro o pai que passava meia hora por dia com ele. Meio distante e meio apressado, o pai procura pelo menino na porta da escola onde ele passa quase a metade do dia estudando, brincando, cantando e às vezes chorando pela mãe. “Você não tem vergonha? Desse tamanho com quase oito anos e fica chorando? Muito feio!” era o que a inspetora da escola sempre falava para qualquer um que derramasse uma lágrima, seja de dor, alegria ou saudade. E nos confins da imaginação infantil, o menino pensava em outras coisas, coisas de menino.
- oi pai, me dá dinheiro? – diz o menino.
- oi meu filho, me dá um abraço primeiro, um beijo e me conta pra quê você quer dinheiro – diz o pai já abrindo a porta do carro.
- quero comprar um vaso bem bonito. Mas não posso falar mais nada senão estraga a surpresa.
“É o aniversário da mamãe daqui uns dias” pensa o pai relacionando o vaso e a data. –OK, eu te dou o dinheiro, mas é só isso que você quer me contar? E a escola, o que teve hoje?
- aprendemos que é proibido matar os animais.
- você não sabia disso?
- não. O moço da TV mata baratas com uma latinha de veneno.
- isso é diferente meu filho.
- diferente por quê?
- porque barata é suja, tem doença.
Meio conformado com a resposta o menino escorrega um pouco no banco do carro ficando meio deitado. Coloca o dedo dentro do nariz e olha para o pai pra ver se estava olhando.
- olha papai, vou limpar o dedo no banco. Pode?
- claro que não. Sua mãe não te ensina nada não?
E o menino dá uma risada meio presa. Balança as pernas, pisca bastante, coça o nariz e de repente pergunta: - pai, o que é amor?
- que pergunta é essa meu filho? Amor é amor, onde você viu isso?
- no livro da escola, na TV, na propaganda de paçoca, e você viu aonde?
- onde eu vi? Acho que foi na escola mesmo.
- e você sabe o que é isso papai?
- sei. Acho que sei. É uma coisa que dá aqui – diz apontando o dedo na altura da boca do estômago – depois vem subindo, desce pelas pernas e
logo espalha para o corpo inteiro.
- e é gostoso?
- muito gostoso. Mas também dói bastante.
- dói igual injeção?
- não. É outra dor, por dentro.
- igual doença?
O pai pensa, respira e responde: - sim, é como se fosse uma doença, acho que é uma doença. Tem sintomas de doença e pode até matar uma pessoa.
- nossa! Exclama o filho – e tem remédio?
- pra algumas pessoas tem, pra outras não.
- por quê?
- porque nunca se viu o vírus ou o que quer que seja que causa essa doença terrível que mata devagar e com muito sofrimento.
- o menino fica com uma cara triste e calado, olha pela janela, abre a mochila, tira o sapato, olha pela janela, olha tudo a sua volta sem perceber nada. O pai resolve parar em uma lanchonete, descem do carro, entram na lanchonete, olham o cardápio, entram na fila dos pedidos, esperam, fazem os pedidos, pagam, pegam guardanapos e canudos e sentam-se a uma mesa. O menino dá uma mordida no hambúrguer, dá a segunda mordida e antes da terceira ele interrompe o silêncio e fala com o pai:
- pai, papai. O amor é uma doença assim tão ruim?
- é. E não tem vacina.
- você me ama?
- claro que sim, mas é diferente.
- diferente como?
- é amor de filho.
- e tem amor de cachorro?
- tem.
- e de vaca?
- tem.
- e de planta?
- tem.
- e de sorvete?
- tem.
- e de monstros alienígenas?
- tem também.
- e de nada?
- tem. Quer dizer, não tem. Ou tem.
- tem amor de tudo?
- tem sim.
- e qual é o da doença?
- depende, doença é só um modo de dizer.
- modo de dizer o quê?
- olha filho – diz o pai já impaciente – o amor é uma flor roxa que nasce no coração do troxa. Agora come seu lanche e vamos embora.
Eles comeram e, enquanto comiam, o garoto pegou um papel na sua mochila, pegou uma caneta e começou a escrever “o amor é uma flor roxa...”, guardou o papel, a caneta e continuou comendo. Terminaram e voltaram para o carro.
- vamos meu filho, agora vou te levar para sua mamãe, tenho que ir trabalhar e sua mãe já deve estar te esperando.
- pai, como você sabe tanta coisa?
- é porque eu sou mais velho, mais vivido, tenho experiência e já vi bastante coisa nessa vida.
- já viu o amor?
- de novo com esse papo? É claro que já vi. Como você acha que você nasceu?
- como?
- você veio do amor que o papai sentia pela mamãe.
- como ele é? Ele é meu pai também?
- não, não é uma coisa assim que se pode ver.
- então ele não existe.
- é e não é. Depende do que você acredita. Algumas pessoas acreditam que o amor é uma coisa inventada pela cabeça dos homens e depois eles se enganam achando que não foram eles que o inventaram.
- igual o papai Noel?
- mais ou menos.
- pai, você sabe mesmo o que é amor?
- sei, mas é difícil de explicar.
- e a flor roxa?
- é uma metáfora.
- pode ser violeta? também é roxa.
O pai acha graça – pode, pode sim filho, coloque violetas no seu vaso.
- ainda bem que só vou precisar do vaso porque as violetas eu pego do jardim da mamãe.
- isso mesmo filho, coloca um cartão bem bonito também.
Meio confuso, o menino faz planos sem saber direito o que está fazendo. Meio apressado, o pai acelera para chegar logo e voltar para o seu trabalho, chega em casa, estaciona ao meio-fio, dá um abraço no filho, um beijo e dois tapinhas nas costas do menino.
Chegando em casa o menino entra correndo e gritando: - mamãe! Mamãe! – joga a mochila no sofá, fala “oi” para o cachorro e corre para a cozinha onde sua mão o aguarda fazendo um bolo.
- oi filhinho, como foi sua aula? – diz a mãe.
- foi normal, aprendemos que não se deve matar os animais.
- isso mesmo. E o que mais? E o papai?
- foi me buscar, comemos lanche. Eu perguntei pra ele o que é amor.
- e o que ele disse?
- um monte de coisa estranha.
- e o que você entendeu?
- nada.
- filho, é aquela garotinha da escola?
E com um sorriso denunciador o menino confirma a sabedoria da mãe.

André Jundi

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