ESPREITA

Antes de entramos naquela porta sem volta, sem velhos anjos juvenis a acobertarem nossos pecados antes liberados, deixe-me dizer das trapaças da vida e das esquinas, das ruas se essas ruas fossem minhas:

Eu te esperei sem tempo de olhar por mim - flores às mãos e um poema de Drummond, hoje e há muito sou mais um conto de Caio Fernando, talvez tristezas novas, talvez ternuras velhas, mas no sangue corre aquela impressão de década de 80 empoeirando ideais dos 70.

A questão é: poderemos ser jovens novamente? Não, nunca poderemos, conservar o espírito é obrigação do ser humano, mas não dá para esconde-lo daquele ácido cotidiano, cada gota dele a cada dia, quando depois de anos corroeu-se boa parte do brilho antes reservado a um amor juvenil, sim, que se fosse corpo presente em vez de estradas desacertadas, poderia também ser corroído pelo ácido dos asfaltos e humanos imperfeitos.

Melhor então concentrar-me em consertar as esquinas inteiras, não quebradas por tua simples onipresença enquanto te esperei, melhor cuidar de ajudar homens da lei a mudar o nome daquela rua, como se aquela rua fosse minha - se essa rua fosse minha, não haveria porta a escolher, apenas um descampado a descobrir depois da segunda esquina, uma vida a descobrir, voltando no tempo que não volta nunca mais.

Não é melhor simplesmente esquecer: a porta está lá para ser aberta, deixemos ela lá, então, pra que entrar agora? Só porque de tempos em tempos nos encontramos em sonhos tristes, depois as manhãs e dias ficam sempre mais cinzas do que já são? Deixe o cinza, deixe a porta, deixemo-nos à disposição do ar onde bóia nossos anjos desavisados de felicidade, bóiam sobre nós, você sabe, tirando portas e ruas de nossos caminhos, talvez por que achem importante não escancarar os erros do passado, mas eu não errei, só não percebi o quanto você era a dona dessa rua, dessa imensa avenida da minha vida.

Deixemos a porta guardada feito foto desbotada no bolso roto, o resto são memórias que não ajudam a viver - às vezes, só sobreviver, o resto do caminho pela nossa rua se fez e ainda se faz, avenidas e alamedas, becos e trincheiras. Espreita.

O que há é isso mesmo: a espreita melancólica e os velhos anjos juvenis, hoje adultos que seguram nossas mãos na direção “correta”; as trapaças da vida e as ruas se essas ruas fossem minhas só pro meu amor passar - mas passar apenas feito corte e cicatriz, e o sangue ainda escorre um pouco às vezes, mas vai passar, meu amor, vai passar, mantenha teu caminho, teu brilho sem ladrilho, tua porta entreaberta, porque tudo passa feito febre, tudo passa, meu amor, menos você na minha rua, tudo bem, essa rua já sou eu, esse asfalto já sou eu.

A espreita é cega.

O asfalto já trincou.

A rua vai fechar.

As casas vão ser abandonadas.

E as portas vão ranger a dor do abandono feito aquelas ruas de faroeste ou filmes de ficção, quando o vírus destrói a cidade.

Tudo vai ficar bem, meu amor, tudo vai ficar…

Cauê Rigamonti

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