A GATA CARNÍVORA E A CASADINHA
Todas as tardes de domingo, Beth espiava os recém-casados do parapeito da janela. Às vezes chovia, a vidraça molhada atrapalhava um pouco, ainda assim, dava para ter uma boa visão. Breno era alto, volumoso, ficava sempre por cima de Juliana, magrinha, miúda, imóvel. Dela só se via a longa cabeleira castanha espalhada sobre o lençol. A espectadora não se importava com o sumiço da moça na cama, seus olhos viviam apenas para aquele homem grande de cento e dez quilos.
Quando o sexo acabava, Breno seguia para a cozinha e Juliana, para o chuveiro. Beth não hesitava, pulava da janela direto ao encontro do rapaz. Ele sorria, embora estranhasse sua pontualidade.
Não tenho nada pronto pra te dar, menina, o almoço foi uma droga, só verde. Vou pegar uns frios...
Fala baixo, foi a dona da gata quem me deu a receita, advertiu Juliana, entrando na cozinha.
Mulher grávida precisa de carne. Toma, Beth, presunto do bom.
Miau, agradeceu a gata carijó.
Eu não estou grávida. Nem a gata.
Mas vai ficar.
A academia me ligou ontem.
Aquelas vadias que arranjem outra professora.
Cabecinha...
Chega de reclamação, se veste que a gente vai naquele shopping de móveis que abriu. Vamô escolher o quartinho do bebê, jantar numa churrascaria. Então?
Prefiro o botânico.
Pra ver mato? Andar à toa? Tomar água de coco? Tô fora!
Que macho!, suspirava a gata, quando ouviu Nana, sua dona.
Beth, Betinha, pra casinha, Beth, Betinha, gritava, preocupada, pois há meses desconfiava que a felina andava degustando mais do que a sua ração vegetariana.
Juliana se animou. Adorava conversar com a vizinha terapeuta e devolver a pequena carnívora era um ótimo pretexto pra isso.
Nana representava tudo o que a casadinha um dia quis ser. Seus cabelos crespos de fogo emolduravam um rosto franco, realizado. Tinha os braços cheios de pulseiras e braceletes que faziam um barulhinho gostoso, excitante aos ouvidos de Juliana.
Estou atrasada, o grupo da Fraternidade Branca logo chega aí, disse, pegando Beth por cima do muro. Os olhos da jovem casada brilharam.
Quer participar da reunião?, perguntou Nana. Como sempre, a moça deu uma desculpa qualquer para não ir. Queria evitar as críticas e o sarcasmo do marido.
Vamos, lindinha, evocaremos a chama do amor... A explicação da esotérica foi interrompida pelas gargalhadas de Breno. O homem achou tanta graça quando ouviu aquilo que quase se engasgou com o pão. Constrangida, Juliana encerrou a conversa e voltou para a cozinha.
A reunião da Fraternidade foi agradável, evocaram o raio cor-de-rosa. Ninguém o viu. Nana dizia que os gatos só enxergavam o amarelo, o azul e o verde, portanto Beth também o viu. Mas o sentiu profundamente. Primeiro rosa, depois magenta e por fim, vermelhíssimo.
A pequena encerrou o dia imaginando o universo colorido que contemplaria se o raio vermelho integrasse seu quadro de cores primárias. Se eu pudesse , afirmou a gatinha, trocaria a visão do verde pelo vermelho. E concluiu, qual o sentido de saber que as árvores são verdes? Seu formato já não diz tudo? Cor mais sem graça e fria. Se cada dia fosse uma cor, domingo seria vermelho!
***
De segunda a quinta, a gata não fazia muito mais do que dormir e comer. Vez ou outra, subia no muro e via Juliana sozinha, lendo na rede. Nunca descia até o quintal, Breno chegava tarde e com aquela jamais ganharia uma carninha.
Nesses dias de hibernação, Beth era capaz de tolerar quase tudo. A movimentação dos pacientes de Nana, os irritantes agradinhos na cabeça, todavia, às vésperas do dia D, que ninguém se metesse com ela. As sextas e sábados eram intocáveis, sagrados, passava horas lambendo-se ao sol, meditando sobre o telhado e miando por nada.
Segundo a dona, as reações faziam parte de um trabalho energético felino, preparando o lar para a reunião da Fraternidade Branca. Na verdade, os sintomas pertenciam tão somente à ansiedade, intensamente vivida. Até as badaladas do relógio suspendiam sua respiração, pobrezinha, o badalo alemão trabalhava a cada quinze minutos.
E foi justamente no último quarto de hora, antes da sexta anoitecer, que a felina percebeu uma agitação incomum na terapeuta. A mulher andava de um lado para o outro, colocando coisas na mala de viagem. O instinto de Beth dizia corra, corra , porém, quando percebeu, já estava trancada na sua caixinha de transporte. Miau, miau, miaaau...
Nana debruçou-se no muro e avisou a vizinha que passaria o fim-de-semana fora. Os olhos verdes da felina ficaram como duas piscinas cheias d'água. Já não queria miar, emudeceu-se.
***
Durante a viagem, nas trevas da caixa, descobriu o que se passava. Nana e um amigo massagista conversavam animadamente sobre o espaço que alugariam num hotel-fazenda. A mudança seria em três ou quatro semanas.
A gata dormiu anestesiada com o choque da notícia e só foi despertar com os primeiros raios de sol. A princípio, mostrou-se animada ao ouvir dois pássaros barulhentos disputando uma garota no telhado do chalé. Em seguida, lembrou-se de tudo e a irritação tomou conta da pequena.
Nana e o massagista, que gentilmente se dispôs a carregar Beth na caixinha, passearam toda a manhã pelo hotel-fazenda. O lugar era enorme e abrigava todos os tipos de terapias alternativas, cursos e muitas árvores.
Meus olhos não aguentam mais tanto verde, queixava-se a felina, quando foi interrompida por uma voz rouca que penetrou seus pensamentos, nem tudo aqui é verde . Beth procurou assustada e viu que se tratava de uma outra gata, Rubi, trazida nos braços da gerente do hotel.
Nana mal abriu a caixinha e as felinas já estavam se cumprimentando com os focinhos. No entanto Beth, pouco paciente com os da sua espécie, correu para o sol. Rubi a seguiu, afinal tinha de fazer as vezes de anfitriã.
Conversaram sobre suas linhagens, técnicas de lavagem a seco e os segredinhos das donas. A enorme gata preta de olhos amarelos fez com que Beth esquecesse dos problemas, porém uma frase da gerente trouxe seu drama à tona novamente:
Preciso de vocês na próxima semana.
Já?, surpreendeu-se a terapeuta.
Durante as férias serão nossos contratados e depois, se gostarem, podem alugar o espaço.
Eu topo, aceitou o massagista imediatamente.
Morto de fome, insultou Beth, seguindo a conversa com a cabeça. Nana estava pensativa, mexeu nas pulseiras, nos cabelos e por fim respondeu:
Podem contar comigo.
A gatinha se embrenhou na mata. Arrasada, abriu seu coração à outra. Contou sobre as tardes de domingo, seus desejos de dar cria, comer carne, contemplar o vermelho... Rubi jurou de patas juntas que podia enxergar a cor. Beth não acreditou.
Vou levá-la até a capela vermelha da Deusa.
Estou cheia de ouvir falar em deuses, mestres e anjos.
E se eu disser que Ela pode ajudá-la?
Como assim?
Podemos ser privados do cio, das crias e das carnes, mas nunca da curiosidade, ironizou a gata preta, com os beicinhos entreabertos.
As recém amigas saíram da mata e seguiram em direção as colinas. Rubi contou que a deusa era Tsun-Kyan-Kse, responsável pela transmutação de todas as almas do mundo. Porém ninguém sabia disso, posto que a capela fora colocada no anonimato de uma noite estrelada. Desde então, muitas romarias se fizeram para visitar a Nossa Senhora dos Asiáticos.
Rubi foi a única testemunha da verdadeira história, nascida quando duas palestrantes enfrentaram a escuridão e a ventania da maior colina da região para dar um lar definitivo à divindade querida. Eram ex-monjas da antiga Birmânia que rodavam o mundo, com a estátua na bagagem, delatando as atrocidades cometidas pela ditadura em seu país.
Tsun-Kyan-Kse era de um jade branquíssimo, raro. Um manto dourado cobria os longos cabelos negros. Seus olhos puxados lembravam duas safiras azuis, cheias de vida e movimento.
Veja como vibra o vermelho, disse Rubi, diante da capela. A Deusa está dando boas-vindas.
Por que não ouço?
Talvez porque não enxergue! Se aproxime, peça auxílio.
Beth andou ao redor do pequeno abrigo vermelho, roçou a cabecinha na porta de vidro e confessou seus anseios e angústias.
Está pronta?
Pra quê?, quis saber Beth, admirando as íris da divindade, que giravam feito duas espirais.
Tsun perguntou se você está pronta para seu desejo.
Eu nasci pronta!
Sendo assim, a Deusa ordena que volte na hora mágica, às seis da tarde.
As felinas retornaram ao hotel e dormiram o resto da tarde. Nana ficou aliviada ao vê-la de volta, mas não lhe deu muita atenção, estava cheia de atividades. Melhor assim, pois quando faltavam trinta minutos para as seis, Beth despediu-se da amiga e rumou para a colina.
***
Já passava das nove quando Breno chegou em casa. Tinha perdido a noção de quantos carros consertou naquele dia. Exausto, respirou fundo e entrou na sala.
Nada de novela, cobertor ou Juliana encolhida no sofá. Tudo apagado, exceto a cozinha. De lá vinha luz, música e um aroma divino. Por segundos, sentiu-se menino outra vez. Viu a mãe preparando o jantar de portas abertas, a criançada correndo no quintal, os sons, os cheiros...
Queria reter a sensação, não era todo dia que momentos mágicos atravessavam seu caminho, contudo, deixou o passado na sala e seguiu intrigado para a cozinha.
Breno esfregou os olhos, não acreditou. Um banquete o aguardava sobre a mesa: carne recheada, um enorme frango assado e várias porções de frios.
Quem vem pra jantar?, perguntou, sem ver a esposa.
Prefiro tinto, afirmou a mulher, fechando a porta da geladeira com uma garrafa de vinho na mão.
Será que sofri um acidente, pensou, estarrecido ao notar que aquela linda criatura vestia somente um aventalzinho e mais nada.
Abra, ordenou, com um olhar inédito para o marido.
Breno achou melhor tomar um banho, a esposa repudiava seu cheiro de mecânico. Tarde demais. Quando ela se virou para acender as velas, estrategicamente postas entre os pratos, o homem explodiu tal qual um vulcão e a agarrou ali mesmo.
Juliana era a volúpia encarnada, mordiscou, lambeu, arranhou. Pela primeira vez, Breno se sentiu desejado por ela.
Quase à meia-noite, os recém-casados cearam felizes, brincando de dar nomes aos futuros filhotes. Tentaram dormir, mas o desejo era maior que a exaustão.
***
Beth acordou com o miado da amiga, estava deitada aos pés da capelinha. Parecia perdida, perguntou onde estava e até quem era. Enquanto Rubi narrava as últimas vinte e quatro horas, a pequena passeou pelo gramado, avistou cachoeiras, lagos e o hotel-fazenda. Lembrou-se de Nana, das pulseirinhas, da Fraternidade Branca, e uma repentina harmonia apossou-se dela.
A gata caiu em si, estava livre de coitos e crias. Finalmente um domingo feliz, gritou no topo da colina.
Um domingo que pediram à deusa.
Priscila Daniele