Trilhos urbanos

O insistente alarme do despertador se fez ouvir pela terceira vez, em intervalos sonoros contínuos. Por alguns segundos titubeou: "levanto ou   não?" Tinha que levantar, e rápido. Perdesse a hora, ouviria as reclamações o resto do dia, o qual já era suficientemente difícil de transpor sem este adicional. Calculou o tempo disponível e, num salto, estava no banheiro, não sem antes pegar uma toalha no armário. Escolheu uma, já puída, mania antiga, toalhas novas não absorviam a umidade do corpo. Banhou-se rapidamente sem deixar que a água, nunca suficientemente quente no inverno paulistano, caísse sobre os cabelos. Não pretendia lavá-los, processo demorado, executado 3vezes por semana. O pouco tempo restringiu sua refeição a uma xícara de chá, resquício da noite anterior, rapidamente requentado pelo
micro-ondas, e tomado num gole, sem açúcar ou adoçante, simplesmente puro. Pressionou o botão do elevador por várias vezes, como se isto, de alguma forma diminuísse, um segundo que fosse, o tempo que o velho elevador, já cansado após mais de 20 anos de serviços prestados, levava para percorrer os 11 andares que separavam o térreo do seu andar.
Por ser magra, pescoço longo e seus loiros cabelos cobrirem os ombros, passava-se por uma mulher alta, embora melhor se enquadrasse na categoria de estatura mediana. Usava um colete, destes que utilizam nos dias de frio. Seus braços longos ficavam indefesos frente à onda de frio que atacou a cidade. Tinha os olhos verdes e seu queixo pontiagudo destoava da harmonia do seu rosto. A calça jeans, desbotada pelo uso, tinha detalhes em bordado na lateral esquerda. Sua bolsa, pequena, parecia suficiente apenas para carregar a carteira de documentos e algumas bugigangas, nada mais. O sapato, relativamente alto e completamente preto, era o que tinha de mais sóbrio. Os
dentes, um pouco amarelados, davam a impressão de que fumava, ou fumara durante algum tempo. Não carregava adornos. Optou pela garagem, pois, embora carro não tivesse, queria fugir do olhar de repreensão do sindico. Há meses, não pagava as contas do condomínio. Não era a única inadimplente no prédio, mas, para quem fora criada, sob a égide da retidão, aquela situação era insustentável.
Dois ônibus, um metro e, uma hora depois, atravessava a porta da Contabilidade Viera. O dono - como sempre - acompanhava a entrada de seus empregados. Noutros tempos, diziam, havia uma bandeja com biscoitos e chá para recepcioná-los. Bons tempos, que não se repetem.
O proprietário a olhou com a habitual sisudez, embora, sabia ela, nem sempre havia sido assim. Nos seus primeiros meses, era recebida com um largo sorriso, incrustado naqueles ridículos bigodes, de onde desfilavam gentilezas de toda ordem. A simpatia acabou quando, de forma enfática, recusou o recorrente convite para uma esticada após o trabalho. Precisava trabalhar, tinha consciência, mas tinha princípios. Aliás, pensou, não sabia se eram os princípios ou o asco que sentia por aquele homem, que a impediam de pensar na hipótese.
Atravessou a primeira parte do dia atendendo cordialmente os telefonemas que tinham como destino o número central do PABX. Novos e velhos clientes, fornecedores e, mais de tudo, uma imensidão de operadores de telemarketing propondo: celulares de graça; cursos de inglês ou espanhol; cartões de crédito; e doações para as mais dignas causas. Tinha como obrigação, filtrar desta enxurrada de profissionais, aqueles que, de fato, tinham negócios com sua empresa. Ficava atenta, nunca mais cometeria aquele erro: "Por favor, o Sr. José...", e ela, "Que José? O Alves ou o Carlos?". "O Carlos, sim, o José Carlos, por favor,". E o posterior sentimento de estupidez ao saber que fora enganada por um vendedor de assinatura de revistas. A partir deste evento, ficava atenta a qualquer gerúndio que caracterizasse uma investida comercial: "Posso estar falando com a área de recursos humanos?". Não, não podia. Trabalhava como um ser autômato; atendia, respondia, encaminhava ligações, mas, não regi strasse o nome das pessoas, segundos depois, não lembraria de nada, nenhum nome, nenhum assunto. As informações permaneciam em sua mente apenas o tempo necessário para serem colocadas no formulário; nome, assunto e ramal. Depois eram apagadas de sua mente como se pertecessem a um passado a ser esquecido.
Neste dia, resolveu não almoçar. Primeiro, porque pensara em economizar o tíquete refeição e com isso, reforçar a despensa e, por outro lado, a fome não era suficiente para encarar aquela mistura de cheiros saturados, óleo, gordura, temperos, cebola, entre outros indecifráveis, que habitavam o restaurante das proximidades.
Trancou-se no banheiro, sentou sobre a tampa do vaso sanitário e colocou os pés na parede. Não estava cansada e, mesmo que estivesse, seria difícil relaxar daquele jeito, mistura de posição sexual com exame ginecológico. O tempo não passava. Não dentro daquele cubículo. Agradeceu o fato de haver poucas mulheres na empresa e, por isto, não ser aquele espaço concorrido.
O restante do dia transcorreu num ritmo mais lento, porém, como de manhã, de forma delével. Por duas vezes, sentiu ânsia de vômito, mas conteve a pressão, forte, compacta que veio do fundo de seu estomago. Por sorte não tinha nada para colocar para fora. Precisava de um médico o quanto antes. Caminhou célere à estação, subiu rapidamente as escadas que davam acesso à plataforma e, não fosse por míseros segundos, já estaria embarcada numa composição de vagões. Esperaria o próximo. O esforço havia acelerado seu batimento cardíaco. Parou diante da linha amarela que delimita a área de segurança, linha que, como um muro ou uma barreira, separava um lugar seguro de outro, imprevisível, perigoso e, de certa forma, atraentemente convidativo face ao brilho metálico dos infinitos trilhos. Perguntou-se onde começavam e onde terminavam aqueles trilhos. Não sabia. Aquele conjunto de peças, que com sua robustez, sustentava há anos, algumas toneladas de metais e outras tantas, de pessoas, sem nunca fraquejarar, emanava uma sensação forte segurança que, em nada condiziam com o cartaz de advertência. Maravilhava-se com aquela obra de engenharia quando, ao fundo, ouviu um apito - forte, estridente e profundo - quase hipnotizante. Respirou fundo e percebeu um cheiro, forte, constan te e intenso. Nunca o percebera antes. Cheiro de pó que fora sistematicamente desprendido dos freios dos vagões e acumulado entre os belos metais. Pó, nada mais que pó. Pó que fora
desalojado naquela estação, sabe-se lá quando e que, a partir de então, ficara resignado a ser levado de um lado ao outro, a cada parada dos vagões sem nunca sair daquela mesma estação. Irônica condição: ter um trilho infinito a seu dispor e estar fadado a viver a sua eternidade num mesmo local. Limitado a acompanhar as mesmas pessoas, felizes ou infelizes, entrando e saindo dos trens, buscando seus rumos, cumprindo os seus destinos.
Inebriante, o cheiro era por demais agradavel, acolhedor. De súbito, não havia divisão, tudo parecia seguro. Incomodo era apenas o irritante apito. Pôde ainda sentir as unhas de uma mão, infeliz, arranhar seu braço, numa luta vã. Sentiu o rançoso gosto do pó e seu forte cheiro, e tudo, num grande escuro transformou-se.

Claudinei José da Silva

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