Impunemente
"E então, na sua vasta sabedoria, o homem comete o crime perfeito, autorizado pelo próprio homem."
Ninguém conseguiu entender o porque de Isabele ter abandonado os estudos, justamente quando faltavam apenas mais dois períodos para concluir o curso
de Assistente Social.
Foi neste período que Isabele terminou o estágio no Educandário e transformou-se numa criatura de hábitos soturnos, de questionamentos vagos aos ouvidos de quem não acompanhou sua trajetória ali dentro.
Nada havia que pudesse ser feito para sensibilizar Isabele a ponto dela sentir a necessidade de mudar seus novos hábitos e costumes. Ela saía todas as noites e, quando questionada, dizia a mesma frase:
- Preciso aproveitar a proteção que tenho, em prol dos que, um dia, foram deixados à margem até mesmo por mim.
E, assim, Isabele partia, deixando mais uma vez seus pais sem saber o que fazer para entender o que se passava na vida de sua filha única. O retorno acontecia sempre quando a madrugada já se entregava aos primeiros raios de sol. Isabele, então, recolhia-se ao seu quarto e só sairia dali para uma única refeição e, posteriormente, seguir pela noite.
Quase um ano se passou até que Isabele chamou seus pais e contou toda a sua história.
- Pai, mãe, vocês não entenderiam a minha escolha, por isso resolvi me calar durante todo este tempo. Quando eu ainda fazia estágio no Educandário Lucas de Azevedo, presenciei uma cena que muito me aterrorizou. Eu estava numa das sessões de acompanhamento com um dos menores, Rodney, que fora levado para aquele local. Neste dia ele me contou o porque de sua ida para as ruas e de como chegou ao Educandário, de onde tentou várias fugas, pois sofrera desde espancamentos à estupros. Contou-me ainda que sua única salvação para sair dali seria seu irmão mais velho, Rodnilson, que era fugitivo da polícia. Nem preciso contar-lhes dos outros detalhes da entrevista. Mas em determinado momento, no qual Rodney pronunciou os nomes dos responsáveis pela sua vida de torturas ali dentro, um guarda adentrou violentamente a sala e arrastou-o para fora. Ainda pude ver nos seus olhos o pedido de socorro.
Pai, mãe, vocês só entenderiam se pudessem ver o que vi naqueles olhos e, o pior, o que vi nos olhos do guarda que o arrastava pelo corredor. Foi neste momento que decidi sair a procura de Rodnilson. Mas, nas minhas andanças, vi e vivi muito mais do que qualquer Universidade pode me ensinar. Por fim, consegui localizar Rodnilson, mas já era tarde. Rodney foi encontrado morto no pátio do Educandário e o que eu ouvi de seu irmão fez-me crer definitivamente na impunidade. Ele simplesmente me perguntou se eu acreditava na existência do crime perfeito. Claro que eu respondi que não. Ele me olhou como quem olha através de algo e foi embora deixando uma pergunta no ar: "você quer um crime mais perfeito do que este?".
Márcia Ribeiro