RENDA PORTUGUESA

              "Fica quietinho, fica... Olha!" Os corredores das duas casas eram separados por um muro. Ela não sabia que eu estava do outro lado. Tomava um café, recostado no batente da porta. Sua vo\, quase infantil, misturou-se ao chilrear dos pássaros, ao verde da renda portuguesa, às flores brancas e vermelhas caídas dos hibiscos. Era uma manhã lavada. Tudo parecia novo, como se a natureza acabasse de ser formada. Chovera muito à noite. Daquelas chuvas inesperadas... Inesperada como a morte. De repente, a notícia. O silêncio... Uma longa pausa... Desapareceram os gritos. Não havia mais razão; os filhos pareciam ter dado uma trégua a ela.
              Borboletas arriscam um voejar pirata. Duas orquídeas nos espiam. Pássaros empurram o silêncio. Ondulam asas-deltas no céu... Surfar em nuvens. Alguém bate estacas ao longe. Há um ruído de máquina; alguém cortando grama. Mutilam... Teimosas, elas crescem novamente. Onde deixar a renda? Debaixo dos hibiscos, na sombra, você disse. Percebi que também ouvia a voz da mulher do outro lado do muro. Nada falamos sobre isso. Desviamos nossas atenções para a renda portuguesa. Onde colocar-se na vida? Nas sombras? Longe dos ventos? Ou sair na Marquês de Sapucaí como se aquele fosse o último dia? Depois, a paroxítona apontando seu dedo, em rigidez militar: chegou a hora. Que hora, se não sei nem por que vim? Por que viemos? Deve ter sido essa a grande pergunta que mudou os rumos. Por que retomar à rotina depois dela? melhor pisar na grama, na água, na vida, sem saltos de borracha.
               A coleira esquecida no prego, as palmadeiras, a velha arandela sem luz, as azaléas, a água da piscina, serena. Quantas vezes não parei nesse mesmo lugar e fiquei à espreita aguardando o silêncio depois dos gritos? Como toras a impedir novos caminhos. Matam... Para que os muros? Eles não barram vozes... Muito menos silêncios. Somente os olhares... Nós a conhecemos tão bem! É o que você diria, não estivéssemos preocupados ocm o melhor lugar para colocar a planta. Mas não precisava, não havia muros entre nós, somente o olhar. E les se separavam, desviavam-se para o outro lado sempre que o ódio daquela voz clareava os cantos escuros dos canteiros. Não passava meio-dia para os gritos rasgarem a manhã, afugentarem as pequenas aves. Elas saíam em revoada, assustadas como as crianças. Voltavam mansamente, ciscando pequenos alimentos. Não demorava para a antiga ordem voltar. Na casa, também. Acho até que, com o tempo, eles se acostumaram. Pareciam menos convictos da necessidade da fuga.
              Estranha, a vida. Ora estamos no topo, ora no vale. Como onda luminosa. A fartura hoje trará a escassez no amanhã. É a lei da vida. Muito sol, queima a pele; pouco, dá osteoporose. São os doutores que dizem. Muita ordem, súbito trouxe a desordem. O carro já não tinha hora para chegar ou sair. As janelas ficavam fechadas, dias seguidos. Não havia mais os pequenos olhos de gato da enina curiosa querendo saber das coisas que ocorriam do lado de cá. Queria saber do silêncio. De nosso silêncio... E somente por isso apanhava... Eu a vi ainda outro dia na rua, os olhos assustados. Até me cumprimentou. Foi rápido, um pouco envergonhada. O irmão desapareceu nas responsabilidades da idade. O outro, o que mais apanhava, perambulava suas tristezas nas ruas. Todos em silêncio.
              Eu não preciso lhe perguntar. Você se lembra. Foi a vizinha da outra rua que confirmou. Aquela mudança repentina não trazia boas notícias. É câncer, cochichou a vizinha. Confirmei com o marido dela no dia em que ele lavava o carro. Contou-me tudo como um grande segredo. Percebi que precisava falar. Meu silêncio serviu-lhe como uma luva. Câncer... Meus olhos nos fios de alta tensão. Por ali passa o ópio do povo, milhares de quilowatts, sons e imagens. Sob os pés um pássaro inocente. Como? Câncer...
              Foi espontâneo suas mãos passearam pelos próprios seios quando lhe dei a notícia. Você quis saber como estava. Como podia estar? Assustado, os cabelos mais brancos. Continuava freqüentando a casa às noites e nos fins-de-semana. Isso quando ela não ia fazer quimioterapia. No restante, era o mesmo homem que imaginávamos quando ouvíamos sua voz. Sem muita conficção de nada, um pouco vazio. Sem identidade. Imantado pelo dia-a-dia. Foi estranho observá-lo sem a agressividade com que tratava os filhos. A voz mansa, com a leveza de uma pena. Amedrontado, olhos impacientes, puxava-me pelo braço para que ela não o visse conversando com estranhos. Ela não quer que saibam, disse-me. Devo ter dito para ficar tranqüilo, que nada diria aos outros. Sentiu liberdade em me contar. Não por confiar em mim, mas por pura necessidade de falar. Teceu o longo martírio, do diagnóstico ao tratamento.
              Não preciso nem perguntar se você se lembra. Apavorou-se com tudo. Ficou semanas olhando-se no espelho. Queria até que eu apalpasse seus seios. Procurou aproximar-se dela. Lembra-se? Talvez não. Você está distraída com a beleza da renda. O tempo sempre apaga um pouco o pavor. O tempo... Uma caixa de comestíveis minutos. Foram meses assim, um silêncio sepucral. Ela estava mais arredia que antes. A peruca mal disfarçava o sofrimento. A volta de diálogos, muitas vezes monólogos, do outro lado, indicava que algo não estava tão perdido assim.
              Nada mudou desde então. Em alguns momentos, chegava a acreditar que tudo voltaria a ser como antes. Mas não. Ouvia-se somente o silêncio. A menina nunca mais apareceu na janela com seus olhos de gato, nunca mais apanhou. Ela perdeu a curiosidade. Ainda ontem a vi na rua. Atravessar a rua pode ser apenas um gesto a mais. Parecia adulta demais para seus treze anos. Pouco se ouvia dos meninos, das antigas brigas que tanto exigiram dela. Andam chutando raivas nos subterrâneos. O lar foi um sonho, um projeto de vida, dobrado. O velho discurso virou pó. A sabedoria é um canto abafado pelo sono dos homens.
              Foi sua mãe quem nos deu... Você tem razão, foi no nosso aniversário de casamento. Adaptou-se bem onde está. Melhor deixá-la aí. Para que mudar a renda portuguesa de lugar?

Carlos Alberto Pessoa Rosa

Do livro: Destinos de Vidro, Meio-Tom, s/ data, Atibaia/SP

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