Sólida Solidão
Era segunda-feira, e ele estava cansado.
Após o dia exaustivo de trabalho, fora ao banco e sacara boa parte do pagamento. Resolvera, lá pelo meio da tarde, que tiraria a noite para si. Pegou o carro e rumou meio sem destino, absorto nos pensamentos, muitos e preocupantes. Rodando a esmo pelas ruas da cidade, parou em um bar da periferia. Pediu uma bebida, sabia que não deveria beber, mas decidiu que queria e iria.
Permaneceu durante um longo tempo, olhos parados, observando o copo. Sorriu um sorriso travesso e entornou a bebida.
-- Mais um, pediu.
Olhou as pessoas, prestou uma atenção exagerada em conversas totalmente desinteressantes e continuou a beber, copo após copo, dose após dose. Ainda se sentia só e e por um breve momento pensou na morte como a mais sólida das solidões.
-- Mais uma dose e um maço de cigarros também, por favor.
-- Mas acabou de comprar um maço senhor, informa o Atendente.
-- É para mais tarde. Os bares fecham. Você não faz idéia de como é terrível procurar cigarros no meio da noite, responde, ao mesmo tempo em que se pergunta porque tinha que dar satisfações a um garçom.
Olhos fixos, pensamentos confusos.
--Sóbrio já é difícil, assim então... -- Guardar os cigarros no bolso interno do paletó, não esquecer, no bolso interno do paletó.
Tira do bolso um saquinho de pano - destes que os lava-rápidos distribuem para se colocar lixo no carro -- e dentro dele coloca o maço extra de cigarros, juntamente com vários guardanapos de papéis, onde durante o tempo em que ali esteve, fez anotações, contas e um poema, no qual gastou algumas horas procurando as palavras exatas e que lhe proporcionou um enorme prazer ao ser concluído.
-- Mais um, grunhe.
-- No bolso interno do paletó. Bolso interno do paletó. A dormência no cérebro já começando. Tão bom. Tão bom não pensar. Não se preocupar. Estou quase chegando lá, pensa.
-- Senhor, temos que fechar. Não acha melhor ir para a sua casa? Já é tarde, o bairro aqui é perigoso. Desculpa-se o Atendente, e em seguida solícito, animado com as gordas gorjetas, pergunta:
-- O senhor tá bem? Dá prá ir?
Diz que dá e pede uma garrafa para levar.
-- Teria um copo descartável? Não? Tudo bem. Difícil beber destilado direto do gargalo, mais dá-se um jeito, pensa.
-- Vai cobrar a garrafa por dose? É muito. Tá bom, fazer o quê? diz. Sorri para o rapaz e sai.
Passos incertos.
Não consegue se lembrar onde estacionou o carro. Perambula para lá e para cá na noite escura, ouvindo o som dos próprios passos na calçada. Sabe que tem outra coisa que precisa se lembrar. Não consegue. Recorda vagamente que é a respeito dos cigarros, o quê? Não lembra. Esforça-se. A luz do poste desenha figuras monstruosas no asfalto, baseadas em sua sombra e ele sente um medo infantil. Por uma fração de segundo a imagem de seu quarto e sua cama se desenham em sua mente, o que o faz sentir-se mal. Talvez devesse estar em casa e não na rua feito um cão vadio. O que procura afinal? Meio cambaleante senta-se no meio fio e coloca a garrafa de bebida no meio das pernas. Situação nem um pouco condizente com a figura bem apessoada e o terno de bom corte.
Passa a mão pelo rosto e sente, aliviado, o contorno dos óculos.
-- Graças a Deus estão aqui, ainda não os perdi. Os cigarros, lembra, quando subitamente um carro para à sua frente e dele descem dois homens. O primeiro armado, grita:
-- Mãos na cabeça. Encosta na parede vagabundo.
Continua sentado, demora um pouco para compreender e atônito olha os homens com olhos que olham mas não vêem.
-- Vagabundo não! Sou jornalista! reage, dedo em riste, com a coragem dos bêbados.
-- Cala a boca, grita o segundo. Tem documentos? Encosta na parede, abre as pernas, jornalista é, recebeu pagamento hoje? Tá com dinheiro? rosna em voz baixa.
-- Mas afinal, o que é isso? Um assalto? pergunta, agora em pé e meio desperto. Lá atrás, vindo de algum lugar, uma música insistente toca em seus ouvidos.
-- Temos cara de assaltante, safado? temos?
-- Sei lá, não estou entendendo. Os cigarros, pensa, preciso fumar agora, onde estão os cigarros?
Após uma breve troca de olhares com o amigo, o homem armado, fala alto, mas já não gritando:
-- Abaixa essa mão que aqui ninguém é polícia.
-- Mas é polícia ou não é polícia? Pergunta, a confusão cerebral aumentando.
-- Cala a boca, cadê o dinheiro? Cochicha o homem desarmado.
De repente, vem à lembrança, a frase tantas vezes repetida mentalmente, e ele diz:
-- Bolso interno do paletó, ao mesmo tempo em que leva a mão, ao bolso traseiro da calça.
O homem armado, assustado, atira. Tiro certo, de quem está habituado a manusear armas.
Ele cai.
O outro apressado, desajeitadamente, enfia a mão em seu bolso e o rouba, pisando sobre os óculos na fuga.
Caído, num momento de lucidez que antecede à morte, ele ouve ao longe, de novo, a música, "tá lá o corpo estendido no chão", se pergunta onde está o rádio e percebe perplexo que o som vem de dentro da caixa de seu crânio, então, ouve, e bem próximo, pessoas que dizem coisas desconexas e sem que consiga vê-las, apura os ouvidos curioso.
-- Morreu? Foi a polícia? Não. Assaltantes. Parecia polícia. Disse que não era. Foi assalto. Parecia polícia, foi de assalto. Sei-lá, vamos dar o fora.
Faz um esforço inumano para tentar compreender o que está acontecendo, de quem estão falando, as imagens do ocorrido misturadas com a música e as vozes, se transformam em um emaranhado tão grande que ele decide ignorá-las.
No carro, o motorista assassino, pergunta ao companheiro:
--E aí, tem grana boa?
-- Nada, um maço de cigarros e um monte de lixo!
Cabeça no chão e olhar confuso, ele vê, a alguns metros de seu rosto, os óculos pisoteados.
-- Merda, perdi os óculos de novo, sussurra. A música continua ritimada e ele, agora numa percepção violenta, não consegue disfarçar um sorriso irônico.
O litro de conhaque, abandonado ainda fechado, assiste, quando a mão, num movimento espasmódico, aperta a carteira dentro do bolso traseiro da calça, concluindo o gesto interrompido bruscamente.
Ao mesmo tempo em que, da janela de um carro, um guardanapo branco contendo um poema, levanta vôo, faz algumas acrobacias no ar e pousa numa valeta, onde inevitavelmente se dissolve no esgoto.
Roselene Navarro