O doce sabor da ilusão
Ele batia, batia, batia. Quanto mais pensava em parar, vinha-lhe uma força brutal. Sofria com o descontrole. Murmuravam os curiosos. Muitas perguntas ecoavam naquela tarde, no cubículo onde trabalhavam. Exalava uma ressaca moral.
Na cinzenta pia de mármore, os ingredientes corriqueiros, do dia-a-dia. Não havia magia, encantamento, em seus preparos, como muitos imaginavam. O toque especial vinha das entranhas. Da raiva sufocada, desmedida. A classe alta, triste e infeliz em seus vazios, deleitava-se com o rancor que ela mesma produzira.
Batia ao pensar nas mulheres perfumadas e bem tratadas, que não o enxergavam. Batia ao lembrar do esbelto senhor de terno riscado que se contorcia ao dividir com ele o mesmo espaço do elevador. Amassava. De um lado ao outro imaginava adolescentes rebeldes correndo, feito otários, atrás de suas bolas de futebol importadas. Suavam como os meninos descalços dos terrenos baldios do subúrbio.
Com a massa no ponto, dirigia-se ao forno. Nesse momento, o sorriso rasgava o rosto marcado pelas intempéries dos 30 anos. Dizem que negro envelhece mais tarde. Ou era mentira, ou tinha alma de branco. O labor estava nos contornos dos lábios, no franzido da testa, no canto dos olhos.
O cozimento. Ali, naquele momento, metáfora de vida, expurgava sua exclusão. De alma limpa, rosto suado, respirava aliviado pela punição. Sim. Eles pagavam. Não os altos impostos que desapareciam nas mãos dos governantes, mas os olhares alienados.
Servidos em belas bandejas, mal sabiam a fonte dos seus prazeres. Eram algozes de si mesmos. E era essa crença numa antropofagia velada, que o mantinha alerta, atento, acordado, vivendo amparado na esperança em si mesmo.
Vanessa Aragão