Use na máquina de lavar

Uma quase infindável discussão entre meu cérebro e minha mente. Cada um, em intervalos demarcados por segundos ou minutos, tomando para si a verdadeira existência e legando ao outro apenas a constatação de que não passava de criação do possuidor da palavra. Bati a porta e saí. Pouco antes do TUM característico do fechamento, um dos dois resolveu lembrar da música que me levaria à desgraça com o intuito único de irritar o outro e fazê-lo desistir de se assumir como real. Precisava de ar e ainda teria de me livrar da música odiosa que não saía de minha cabeça. Mal tenho argumentos para tratar a cabeça como sendo um terceiro algo, mais prudente seria tomá-la por uma caixa acústica ressonando aquilo que seria uma marchinha caso não se tratasse de um horroroso jingle do sabão que deixava roupas ainda mais brancas. Que lave minha alma, então. Eu, massa viva de cérebro, mente e cabeça e um par de pernas que parecia não ter nada a ver com a história. Meus passos, cada vez mais irritados e arredios, pensavam ser possível fugir da caixa acústica acelerando freneticamente em busca de um apropriadíssimo país de surdos. Olhando de relance para placas coloridas dispostas em fileiras li generalidades do tipo Come-se bem, Bebe-se bem, Horas de puro prazer, Descansa-se em paz. Ah, deus, obrigado. O país de surdos a alguns quilômetros dali, concluíram minhas pernas ou mina mente ou meu cérebro, qualquer um deles que tenha começado a brincadeira demoníaca. Mal contive a ansiedade que conferia a meu revestimento do conjunto cabeça-mente-cérebro um certo rubor. Não era isso, não era bem a ansiedade. Meu estômago relinchava de fome e o sangue, com absolutamente nada para fazer em meu aparelho digestivo, tomou as veias de minha cabeça-mente-cérebro criando ecos medonhos do jingle marchinha que se assemelhava agora à trilha sonora de um filme de terror. Sua alma cada vez mais alba por mim será tomada. Torça a roupa. Estique a roupa. Torça a roupa. Nem tanto, idiota, o sabão é bom. Passei a temer o branco de meus olhos a apelei para o Come-se bem confiando que meu estômago, assim que provido de suprimentos, tomaria para a si todo o sangue da mente-cabeça-cérebro colocando um ponto final naquela sinfonia de quinta. Comi muito, mas muito mesmo. Enchi meu estômago com gorduras, colesteróis, ácidos graxos e todo tipo de corante que deixasse a comida com qualquer cor que não branca. E se me desse azia com certeza eu ficaria amarelo, verde, sei lá. Não me deu azia e sim uma sede terrível. Fui informado, não sem alguma surpresa, de que no Come-se bem não se bebia. Mas nada? Nem uma água de torneira? Nada. Meu caro, disse uma boca, não se pode ter tudo ao mesmo tempo. Estipule limites para seus prazeres e necessidades que nada mais lhe causará estranheza. Saí e o TUM da porta fez-me desviar o olhar até que avistei a segunda placa, a do Bebe-se bem. A música não me abandonou no caminho para o segundo estabelecimento, ficou mais grave e mais lenta. O sabão barítono agora dispunha-se num palco bem no centro de meu complexo tríplice. Roupa, branca roupa, que desse corpo já se faz ausente. Minha amada caucasiana partiu rumo à luz. O pouco sangue que servia de platéia acomodou-se aproveitando os lugares vagos deixados pela imensa quantidade de hemáceas que se dirigiram ao bizarro espetáculo de ballet de enzimas estomacais. No Bebe-se bem havia apenas um gigantesco balcão. Tinto, vinho tinto, refrigerante de cola, groselha, chá de boldo. Não, meu senhor, sem leite, sem açúcar e se houver um guardanapo de outra cor eu agradeço. O sabão é realmente bom, otário, não adianta. Limpei a boca na camisa. A embriaguez adquirida já nos primeiros goles encheu de pontos cintilantes o que eu chamaria de visão do paraíso. Mas deixemos isso para mais tarde, porque um samba trôpego de chapéu branco passou a ensaiar passos em minha cabeça-mente-cérebro e o sangue do aparelho digestivo agora borbulhava em movimentos caóticos. Que eu me afogo em mágoas, minha branca, se você me abandonar. O TUM do fechar da porta teve dimensões estrondosas. Minhas pernas, aquelas que não teriam nada a ver com a história, agora se entrelaçavam. Portanto, além do meu complexo tríplice superior eu contava com um outro duplo inferior que não deixou qualquer dúvida sobre a autonomia recém-adquirida. E eu podia jurar, com o que me restava de sanidade, que o suprimento de minhas necessidades básicas poriam um fim na melodia, qualquer que ela fosse. Tive paciência para ouvir mais uma ou duas estrofes antes de ter a certeza de que aquilo não acabaria assim. Segundo minha lógica e a terceira placa, nada mais a fazer senão encarar o Horas de puro prazer. Uma lembrança vaga passava ao lado do sambista. Sim, a visão do paraíso, a Eva rodeada por purpurinas, o balançar do quadril que, se não fosse pela bebida, seria o culpado pelo trançar de minhas pernas. Eva, minha morena Eva. Já comi e bebi, passei por trilhas sonoras, óperas, sambas. Não sou conhecedor de estilos musicais mas sim de minhas necessidades. Falta-me o prazer, Eva, e toda a orquestra será eliminada. Posso estar muito enganado, mas creio que o sambista tirou o chapéu para mim. No Horas de puro prazer, alguns cartões com números correspondiam exatamente ao número de horas às quais o cliente tinha direito, não sem alguma proporcionalidade ao dinheiro a ser gasto na empreitada. Menos de uma hora não tinha. Se o senhor quiser ficar menos de uma hora paga o correspondente a uma hora. Não tinha tanto tempo assim para me livrar da serenata e estava certo de que o prazer era o ponto chave, o tiro de misericórdia no maldito sabão com seus ritmos mutantes. Uma cama imensa no quarto roxo deixava-se ocupar pela nua morena Eva. A palma branca das mãos de Eva. O sabão é excelente, sua besta. Começo pelos pés, mulher, já que posso tocar por entre os pontos coloridos. Minhas mãos em teus seios. Perdoa-me a pressa mas é por uma causa nobre. Aquela mistura incrível de comida, bebida e sensações fazia-se espalhar por todo meu corpo. E o sangue, antes localizado em dois lugares distintos, voltou a ser único, denso, veloz, dirigindo-se para o entre minhas pernas agora devidamente desembaraçadas. Minha liberdade, Eva, é ela que agora eu te injeto. Eu venci, morena. Eu tenho agora a merecida paz. Cada gota de suor de meu satisfeito corpo livra-me de um acorde. O TUM da porta trouxe um forte odor de rosas vermelhas. Percebi rapidamente que não. O odor vinha do tango que agora era encenado em minha cabeça. Da direita para a esquerda e da esquerda para a direita. De orelha a orelha. Tus lábios blancos mi tráen recordaciónes de nubes pálidas. Definitivamente estava perdido. Passaria o resto de meus dias com adaptações sobre um mesmo tema. Fui reduzido a uma mídia ambulante de produto único, único ouvinte. Sabão em minhas entranhas, sabão entre os dedos dos pés, sabão deixando branca minha memória, meus pêlos, destruindo minhas idéias. Mas uma sobrara. Havia a quarta placa, do Descansa-se em paz. Uma palidez nesse último outdoor fez-me titubear um pouco, mas não se fala de paz com fundo preto. Entrei, não havia porta. Perguntaram-me se eu já tinha reserva. Neguei, esboçando um sorriso sem graça no meio do qual meus dentes, mais brancos do que nunca, fizeram-se notar. Teria que fazer um depósito e assinar um termo de responsabilidade. Ali, naquele canto, debaixo da árvore. Em qualquer direção, não me importa. Peguei a arma em meu bolso, e se eu não disse antes que portava uma era porque há três placas atrás não parecia relevante. Puxei o gatilho. A bala invadiu o complexo tríplice, arrasando com mente, cérebro, cabeça, trilha sonora, ópera, samba, tango. Minhas pernas tombaram primeiro, eu depois. O último TUM naquele lugar no qual não havia porta fez com que meu sangue se espalhasse pelo jardim. E naquele cenário de verdes, vermelhos e defuntos eu senti a música cessar. Pasmem. A morte é branca.

Adriana Brunstein

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