De novo o verme

                  e novo o verme. Aqui estaria a resposta para tão obsessiva questão, não fosse eu incapaz de saber coisa alguma senão que sou comido pelo verme. Tantas vezes já estive aqui que enumerá-las ou somar o tempo de minhas passagens seria tarefa impossível. Eu, a consciência do verme que me consome e minhas lembranças. Se as lembranças fossem cronológicas eu poderia saber o que andei fazendo mais recentemente. Recentemente! Balela. Aqui não há recente. Não há passado distante. Sei que existe a palavra futuro porque a disse incontáveis vezes, mas aqui ela se dilui sob a voracidade do verme. Minha consciência de tempo se limita à consciência do verme que só sabe comer. Tanto faz se cheguei ao derradeiro estágio ou encerrei algum tipo de ciclo. Só sei que aqui estive antes com os mesmos vermes. Se a indiferença não fosse tão forte e me fosse dado optar ou vontade de escolher alguma coisa, eu escolheria ficar aqui por um pouco mais de tempo depois que os vermes comessem o último naco. Então eles teriam ido embora e eu ficaria sabendo como é ficar aqui sem todo esse batalhão devorador. Talvez eu parasse de lembrar, então, nada saberia. Agora, o que lembro é a lembrança do verme. É indiferente para ele comer o que saltou da árvore para abrigar-se em ocos de pedra ou o que voou em espaçonaves. É por isso que os dois se entrelaçam naquilo que recordo. Não posso distinguir minha façanha mais recente, nem o que comi, se a carne sangrando e ainda pulsando ou o filé grelhado. Minhas sensações também estão subordinadas a do verme. Suas alegrias ou tristezas vêm daquilo que come. Só ele sabe minha última passagem. Quanto a mim, estou reduzido à imobilidade que se deixa comer. Não vejo, não ouço, não cheiro, não degusto, não toco. Sei que sou comido porque a consciência do verme me revela. Não sei como isso acontece. Aconteceu tantas vezes antes e, provavelmente, tantas outras acontecerá. O paraíso também está presente de tantas formas em tantos ciclos que desconfio ser outra obsessão. Se esse paraíso existe, está aqui junto ao verme. Passar a eternidade aqui, talvez seja uma dádiva apenas para os eleitos. Sei que eternidade é algo imensurável e desejado porque é outro desejo sempre presente, mas aqui é obsoleto. Ficar de vez aqui pode ser um prêmio, só que o prêmio também é obsoleto. O prêmio é o nada, mas o nada é perder a consciência do verme, que mesmo tão fragmentada quanto o número de sua espécie, ainda assim, é o registro de tanta peregrinação. Bem que a chegada do verme poderia ser progressiva. Primeiro um só verme se instalaria e me daria todas as chaves de todos os escaninhos. A percepção de toda a existência pela consciência de um único verme, um verme senhor de todas as coisas. Pode ser que exista tal verme. A consciência de que possa haver uma só unidade baseada num único e ínfimo fragmento é quase aceitável, mas conjeturar o que seria essa unidade é inimaginável. Não tenho a compreensão de minha forma, só uma existência anuviada e amorfa é o máximo que o verme fragmentado é capaz ou quer me dar. Sei que sou agora alguma coisa em movimento porque o verme não para. Sei também que sou múltiplo dentro de uma unidade corpórea. Isso me é dado saber pela múltipla consciência do verme. Não sei o que será o pós-verme. Não ficarei aqui para sempre, do contrário o verme seria o não-ser e não me daria essa percepção, embora tão pontilhada e disforme, do universo fora de sua tutela. As sensações que tenho são de infinitos pontos de luz que piscam numa velocidade vertiginosa e em tempos distintos. Por isso sei que sou uno. Não há duas sensações ao mesmo tempo, embora haja uma proximidade tão grande entre uma e outra. Talvez o grande verme que dá forma, unidade e uniformidade possa existir ou, quem sabe, terei a sua consciência só no pós-verme/fragmento. Não sei como seria viver nesse estado de coisa proporcionado pelo grande verme. Pelo que sente o verme agora, não há como conjeturar. Seria como ajuntar partículas afins da poeira de todos os corpos juntos e uni-las para formar um grão de uma única matéria e depois formar outros grãos até o resultado de um minúsculo pedaço que possa ser identificado e classificado. Por tamanha impossibilidade tenho que me resignar em saber apenas que sou comido. E se me é dado ter essa sensação, é sinal de que tudo está por vir a ser. Tudo que fui até aqui me é revelado num turbilhão tão intenso que não há como distinguir um ponto sequer. O tempo do pós-verme – ou antes do verme – deve ser muito maior que o do próprio verme, senão essa nuvem de fragmentos não seria tão intensa. É possível que depois daqui haja a unificação múltipla do verme. Os fragmentos se juntam numa unidade distinta para formar uma nova consciência dissociada do que era antes. Unidade e multiplicidade, fragmento e o todo. Essa deve ser a chave de todo o mistério. Se o verme revelasse os termos e seus significados, seria razoável pensar na possibilidade da resolução do enigma. Mas o termo me é revelado e apagado na mesma velocidade que os fragmentos cintilam num universo tão vasto de sensações. Não sei se sou ação ou reação. Sei do vento fora daqui, mas não sei se sou o que sente o vento ou se sou o próprio vento. Não sei do quê o verme se alimenta, se da matéria que conduz o sentimento ou do sentimento que move a matéria. E se nada sei a esse respeito, também, nada disso pode significar algo para mim. O verme deve saber o que faz. Um conceito só que viesse a ficar inteiro poderia alterar todo o infindável ciclo. Pelo nada a que me foi concedido concluir suponho que eu seja algo pegajoso, que me agarraria a qualquer coisa que me desse um só ponto de apoio e ali ficaria enraizado e seguro, comprometendo todo o movimento da vida. Vida!! Esse é um termo, um fragmento que me é revelado com a mesma volatilidade que os demais, mas que deve ser algo muito forte, pois quando ele me vem, chega com tanta intensidade que, embora infinitamente menor, parece ser tão real quanto a única sensação que sinto, que é a de estar sendo devorado pelo verme. Se o verme me revelasse algo de si eu poderia esquadrinhar um pouco mais o que seria a vida. Não seria a vida a razão principal por ele me comer? Come para preservar a vida. Sei que só aqui o verme me revela sua consciência, então, seria razoável que tudo que o verme come agora seja o resultado do que se passou no ciclo derradeiro, embora só ele possa precisar cada ciclo. O pós-verme pode ser o inverso das posições, eu estarei comendo o verme que agora me come e, então, o que terei será o amálgama de tudo que dei ao verme alimentar-se. Comer e ser comido. Pode ser esse o moto contínuo que me envolve. E se, enquanto sou comido, nenhum conceito me é revelado por inteiro, posso conjeturar sob essa poeira sensorial, o fim ou estanque só é presumível enquanto sou eu quem come o verme, porque se conheço o termo é porque ele assume alguma importância no pós-verme, mas agora o fim é pulverizado. Talvez seja essa a grande diferença entre os ciclos: se num a vida tem apenas a força ancestral e contínua que o termo carrega consigo de ciclos passados, no outro, o fim a nada remonta, do contrário seria a negação do próprio verme que agora me consome. Se cogito a existência do fim é por causa da não passionalidade do verme que não se furta a revelar, mesmo que fragmentado, tudo que um dia foi meu alimento, até mesmo algo tão nu quanto o fim. É presumível que o verme se esforce, a cada vez que passo por aqui, em me revelar que há uma diferença entre o verme que come e o que é comido. E se há uma distinção, há também o espaço determinado para a mutação que pode ser quando o verme se farta e cessa todos os movimentos, preparando-se para mais uma metamorfose. E se a consciência do verme me revela agora esse tempo de mutação, pode ser porque ele já esteja comendo os últimos pedaços daquilo que eu lhe trouxe. Sinto seus movimentos cada vez mais lentos. E do muito pouco que me resta para o verme, é o mesmo tanto que resta a ele revelar-me aqui (...).

JoeRosa

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