PIETÀ
“... foi o mundo que me deixou para sempre
este travo, este cravo, minha paixão...”
Milton Nascimento in Pietà
Chegamos a Cabul em pleno e seco verão, depois de cansativa viagem desde Londres, com várias conexões. O hotel reservado desmerecia este nome, com seus sanitários, comuns a todos os hóspedes, sem água para banho, com ausência total de higiene. Apesar do calor, desabei sobre a cama, querendo relaxar sem conseguir. Em vez do sono, inquietação. Afinal, que vim eu fazer em mais uma guerra? No leito ao lado, Mark também se agitava e perguntou: Qual é o problema, Charles? Viajou calado quase todo o tempo, o que não é seu jeito, ensimesmado, sem comentários sobre nossa missão ou piadas sobre mais esta indecente invasão. Está muito estranho.
- Olha, cara! Desta vez nem sei porque vim. Não me bastou atolar nos pântanos vietnamitas para fotografar corpos incendiando com o Napalm? Quase perder a perna na Coréia? Embrenhar-me nas selvas nicaragüenses? Ser confundido com espião em Granada? Creio que no Iraque esgotei minha cota de aventura e horror. Nisso tudo penso. Não precisava ter vindo, o que ganhei como free lancer dá para viver e nosso leitor já se acostumou a encharcar-se de sangue com tanta guerra...
- É... Mas assim somos: caçadores de notícias, querendo testemunhar para o mundo o quão absurdo ele é. O que vimos na vinda do aeroporto parece ter sido apenas uma amostra do que encontraremos. A caçada a Bin Laden é só um pretexto. Os campos de petróleo do norte deste miserável país que o digam. Quanto às pessoas, que morram.
- Pois é. Além de velho e cansado de guerra, estou preocupado com minha filha, grávida com algum risco. Ela me pediu para não vir. Quando Fred me sugeriu o trabalho e pediu exclusividade para a agência, minhas mãos coçaram, a máquina me olhou sorrindo... Não acredito mais no poder do fotojornalismo para ajudar a mudar o mundo. A humanidade está anestesiada, perdida.
O sono nos venceu. Na manhã seguinte, nossa guerra particular foi arrumar um carro para começar a trabalhar. Resolvemos seguir em direção a Kandahar por terra, pois milícias talibãs controlavam lá o aeroporto. Antes, porém, precisávamos nos abastecer de combustível, água, alimentos não perecíveis; não sabíamos o que iríamos encontrar.
Nas ruas, só poeira, ruínas. Embora os talibãs não mais controlassem a capital, as mulheres que vimos usavam a burca e estavam acompanhadas de filhos e parentes idosos. O medo dos que lhes haviam tirado todos os direitos, do estudo e trabalho à identidade, as mantinham discretas e silenciosas. Crianças e jovens, tantos com muletas improvisadas, nos cercaram várias vezes pedindo esmolas ou algo para comer. A sujeira, o mau cheiro, o calor, as muitas marcas e chagas dos conflitos complicaram ainda mais nossa tarefa. Tirei algumas fotos. Mark, poliglota, conseguiu se entender com alguns poucos velhos e fez suas anotações. Finalmente, obtido o básico e de posse de nossas credenciais, contratamos um jipe para a manhã seguinte.
Nosso motorista logo nos alertou que a viagem seria complicada e poderia demorar muito mais que o esperado, até que fosse possível cobrir a ação de forças americanas. Predominavam os ataques aéreos, contra os quais também deveríamos nos proteger. Poderiam ocorrer sobre qualquer aldeia, desde que houvesse a suspeita de ali existirem quadros ou células do Al Qaeda. Logo de início já nos sentíamos, e realmente estávamos, ziguezagueando para fugir de campos minados. O Afeganistão é um verdadeiro “museu de minas”, às vezes encontradas em três camadas, como se fosse um campo arqueológico. Há minas de todos os tipos e origens, antipessoais, antitanques, russas, iranianas, americanas, dos mujahedin, dos talibãs. A Cruz Vermelha oferece rústicas próteses aos mutilados. “No fim da “guerra”, até a agricultura será extremamente prejudicada pela quantidade de minas”...
Ouvindo o motorista falar em “fim da guerra”, creio que ri pela primeira vez desde que cheguei. Se um dia ela acabar, ainda assim Bin Laden, ex-protegido dos americanos, não terá sido encontrado. E o mundo será cada vez pior.
Economizando água e comida, saculejávamos já há dois dias. Passando por aldeias destruídas, vimos famílias inteiras expulsas de suas casas, principalmente mulheres, crianças e velhos caminhando para leste, esperando chegar ao Paquistão. Seu aspecto era sempre o de trágica conformação e muita fome. Ao tirar algumas fotos, comecei a notar como aquela gente, capaz de tecer tão belos tapetes, estava ficando da cor do deserto, aquela cor que começava a me corroer e tinha a face e o cheiro da morte – a cor de ferrugem.
Horas depois de deixarmos para trás um grande grupo desses seres-ferrugem, avistei ao longe, meio oculta entre as ondulações do terreno, uma mulher que parecia só, sentada na areia. Para esticar as pernas, pedi ao motorista que parasse, deixei Mark quase dormindo no banco traseiro e caminhei em sua direção. Foi então que a vi – uma bela mulher ainda jovem, com os cabelos cobertos mas a face emagrecida exposta, sentada sobre as pernas cruzadas. Estirada em seu colo, nua, uma magérrima criança, costelas em relevo, quase morta. Automaticamente busquei o enquadramento, regulei tempo e abertura da câmera ante a inclemente luz local e tirei uma, duas, dez, nem sei mais quantas fotos. Um filme. Nesses longos minutos em que o tempo parara e a câmera disparava, o olhar da mãe e o da criança permaneceram fixos em mim, sem piscar, sem qualquer expressão facial. Nenhuma dor, nenhum sentimento mais; sem desespero, resistência nenhuma. Congelados, vazios, atravessando a máquina, o filme, o meu próprio olhar... Olhar-sem-ver de corpos ainda com um resto de vida mas já sem alma. Maria e o Menino de olhares ocos. Ferrugem.
Só me recordo de, não sei quanto tempo depois, ter ouvido Mark gritar meu nome, sacudindo-me. Eu caíra. Parece que chorara com a cara enfiada na areia. O amigo me levantou. E então descobrimos: eu nada mais via, eu estava cego.
Cego, fui trazido de volta para casa. Sem perceber qualquer sinal luminoso, com a sensação permanente de ter os olhos vendados por uma cortina cor de ferrugem, passei meses tentando aprender a ser cego. Também a não escutar noticiários de TV, com suas cenas e temas repetidos e enfatizados até que você se acostume ao horror ou se insensibilize. Eu e minha mulher viemos para o campo. Do nosso cottage, bastava-me ouvir a água rolando sobre os seixos, o canto das aves despertando o dia e as palavras da companheira, que finalmente me tem sempre por perto. Sentia-me seguro longe da agitação, da falta de sentido da vida contemporânea, da profusão de imagens e discursos atordoantes, tantas ações estúpidas do ser humano contra si mesmo e a natureza. Falava o mínimo e às vezes me sentia ser os três macaquinhos em um. Mais tarde, para ocupar o tempo, aprendi o Braille. Livre de responsabilidades, repensava minha vida e experiência, tentando montar e entender o quebra-cabeça de imagens registradas dentro de mim. Fazia anotações, mas guardava delas uma cautelosa distância.
Depois de gravidez e parto complicados (quase perdi minha filha), meu neto nasceu. Agora, quando o aperto em meus braços e sinto aquela nova vida pulsando, explodindo, a angústia retorna. Gostaria de poder enxergar seu futuro, contribuir para o mundo em que ele viverá. Acho que vou começar a escrever, a registrar a visão de um cego sobre a ferrugem do mundo.
Em tempo: uma das minhas fotos da mãe afegã, com seu filho agonizante estirado ao colo, foi distribuída e publicada em todo o mundo, tornou-se um sucesso. Ganhei prêmios que mandei guardar, sem querer ou poder vê-los. Algum editor batizou-a de Pietà . PI-E-TÀ...
Maju Costa