ENQUANTO CAEM AS FOLHAS E A TERRA GIRA
"A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado? "
Fernando Pessoa
Enquanto caiam as folhas e a terra girava, fechou a torneira, passou o pano ensebado na pia.
O mármore gasto continuou sua rotina de manchas. Lavou e torceu o pano, recolocando-o no lugar ao lado da pilha de pratos. Com um suspiro resignado, olhou o fogão antigo, a louça arrumada no secador e o azulejo descascado das paredes.
Saiu para a varanda. O sol caia no horizonte empoeirado. Ao longo de toda a visão apenas terra crestada e o azul de céu ácido.
Os cachorros latiram para alguma coisa, um ponto ao longe que ia aos poucos se revelando uma figura humana.
Desinteressada, observou o forasteiro se aproximar, arrastando os pés.
– Água? – perguntou seca.
O homem a encarou fixamente.
Por um momento seu coração baqueou. Os olhos , eram os olhos do maldito.
Os cachorros não paravam sua gritaria infernal.
Entre - disse para o viajante.
Havia uma ligeira palpitação na sua voz.
As estrelas brilhavam fortemente e o vento parecia querer trazer significados. Descansou a pá e enxugou o suor da fronte. Ao seu lado os cachorros observavam silenciosos o pequeno monte e a cruz. Alisou e ajeitou a terra. As folhas dançavam na única árvore daquela região.
Endireitou o corpo e voltou para a varanda, seguida pelos animais.
O céu parecia se abater sobre ela, pesado demais de estrelas.
Começou a chorar, silenciosamente, desmanchando o rímel escuro dos cílios que escorria pelo pó do rosto desaguando nos lábios e borrando o batom.
“ – Não era ele...”
Os cachorros responderam com um olhar de assentimento.
Apanhou o espelho e se olhou uma última vez.
Guardou a cadeira, desatou a rede, enrolando cuidadosamente, deu uma última olhada nos móveis descascados.
Bateu a porta e saiu.
Por um longo tempo ainda, foi possível avistar seu vulto esguio e os cachorros ao redor.
Depois foram engolfados pelas estrelas.
Uma meia hora mais tarde, nova sombra escura recortou o horizonte.
O homem se aproximou da casa, chamou o cachorro. Ninguém respondeu. Assobiou algumas vezes, bateu nas janelas fechadas.
Dando de ombros, enfiou a velha chave na fechadura gasta e entrou.
Enquanto caiam as folhas e a terra girava.
Maria Helena Bandeira