O CAVALEIRO
O cavaleiro achava-se nobre, mais nobre que os outros homens. Não a nobreza espúria da ascendência, mas a nobreza do mérito, dos aptos. Por isso, julgava-se melhor: mais forte, mais hábil, mais sagaz. Naquele dia, levantou-se ignorando a própria intuição, que tentou avisá-lo: é o cheiro da morte que ronda. E a primeira coisa que pensou em fazer foi se avistar com a bela moça, com quem pretendia empreender algo, embora não soubesse exatamente o que seria. Mas antes tinha que conseguir algumas moedas; e estas, estavam cada vez mais escassas. Sem elas, talvez não conquistasse a bela moça. Então o cavaleiro partiu para a luta, não a do embate físico, mas aquela outra, mais perspicaz. Tomou da pequena bolsa de couro e chacoalhou as pequenas peças, já montado em seu cavalo.
As pequenas peças de madeira não eram tão simples quanto pareciam. Suas formas cúbicas quase exatas escondiam um recheio de metal, que as fazia tender para lados pré-determinados. Nunca havia falhado, era só pousar numa taberna e manipulá-los. Em questão de minutos, um incauto o desafiaria. A partir daí, a estratégia era invariavelmente a mesma: perder no início para depois limpar a vítima, entre goles de bebida e uma boa conversa. O cavaleiro podia mesmo afirmar que angariava nesta atividade quase tanto quanto nos pequenos furtos e eventuais roubos que praticava. Além do que, achava bem mais interessante esse papel, dando pistas de que pretendia privilegiar estratégias menos braçais em seus golpes futuros.
Mas voltando à bela moça, era por ela que ele tudo fazia, ou pelo menos o achava. Foi-se o tempo em que era mais jovem e não precisava de um pretexto para suas ações. Logo o cavaleiro sai da estalagem imunda que o acomodava provisoriamente, pois como bom andarilho não parava mais que uns dias em cada lugar. Mas nesse ponto também residiu o seu pecado, por aventurar-se a aplicar o mesmo golpe em áreas relativamente próximas, quase que uma circunferência cujo centro era a casa de sua amada. Filha de nobres decadentes, era pura de coração, e embora não resistisse aos prazeres em companhia de seu amado, jamais imaginaria a criatura com a qual se envolvia. Seus pais, amargos e desagregados, nem se opunham, nem estimulavam a relação com o estranho que se achegou um dia, galante e cheio de histórias.
Com espírito de vencedor é que ele entrou em mais um estabelecimento lotado de homens rudes, destacando-se pela elegância e loquacidade. Em pouco tempo já bebia íntimo de um grupo, a rolar displicente os dados esculpidos na mais fina madeira, trabalho de artesão há tempos falecido e devedor de muitos favores. Até que alguém se aproxima e desafia o faceiro homem, que a princípio não demonstra interesse no assunto. De tanta insistência, ele cede, e interpreta o roteiro planejado. Em poucas horas, joga com alguns e de todos se despede, sem notar um clamor que atrás de si desta vez se forma. Pois com mais aquela soma, acrescida ao que já acumulara, o cavaleiro parte para ver a mulher desejada. E consegue a aprovação da família, que diante do galardão apresentado, a indiferença de lado deixa.
Satisfeito com o saldo do dia, o cavaleiro parte apenas para pegar suas coisas e a pequena fortuna. Acomodar-se-ia provisoriamente na pequena construção ao lado da morada da moça. Quem sabe não seria a hora de deixar de lado a vida de golpes, fugas e incertezas? Quem sabe não seria ela a lhe dar o rumo, o prumo, que tanta falta a vida inteira lhe fez? Pois que o cavaleiro possuía, acima de tudo, um espírito de liberdade, ainda que mal usada e erroneamente justificada. O que o seduzia não era a desgraça alheia, conseqüência dos atos impensados, mas apenas o cavalgar sem destino sentindo o balanço de sua montaria e o vento nas faces. E neste dia dizia para si mesmo que tudo mudaria, antevia a pacata vida de comerciante instalado, quebrando a monotonia somente em missões pontuais a negociar pelo mundo.
E assim ele cavalgava, com tanta pressa e ansiedade que optou pelo atalho do bosque. As copas das árvores criavam um verdadeiro túnel, uma passagem num cenário magnífico, porém perigoso. Naquele momento parecia que regredia, ao se desguarnecer na escolha da via mais fácil que sua visão limitava. Antes de penetrar no arvoredo basto, ainda parou para refletir, roçando o cabo da espada por duas vezes, porque seus sentidos jamais lhe faltaram. Entretanto, tamanha a aflição para deixar aquela vida que ele acabou permitindo-se demais. No meio daquele caminho, já podia sentir o passo ordinário de muitos cavalos com seu ouvido acurado. Todavia, mais uma vez insistia, cruzando o caminho de gramíneas e terra batida. E ao se virar ao ouvir um galope, já era tarde — sofre o primeiro golpe.
A maça atinge-lhe o crânio em cheio, fazendo-o perder por completo o equilíbrio. Depois dela, em sentido contrário, vem a primeira lança, a furar-lhe o abdômen e no chão imobilizá-lo. A dor era intensa, uma dor cruciante, pois que doía em seu ser a consciência de que poderia não concretizar os seus planos. Voltaria a ver sua amada? A segunda lança sepulta suas esperanças, desta vez no ombro direito. Pergunta-se por que o faziam, e a pergunta volta: por que tanto desprezo pela realidade? Por que se mostra surpreso com a perversidade? E a terceira lança vem a pé, mais forte e mais cruel, cravada por um rosto conhecido de algum dia. Seria de hoje, faria tempos? Não importa: vai direto no centro do peito, com mais força e vigor que as antecessoras. Cala de vez a dor seus pensamentos.
André Calazans
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