DAS COMPARAÇÕES INÚTEIS

            Era manhã bem cedo, eu estava sentada na saleta com ela. Está bem arrumada, bem cuidade, bem postada, feliz, realizada, abraçando uma outra porção de sua vida. Terminou a Faculdade e está animadíssima, começando a vida profissional. Primeiro criou os filhos, depois, encontrou esse caminho.
            Eu trabalhei justamente para criar os filhos, acabo de me aposentar e vejo fechadas todas as possibilidades de trabalho. Professora velha não serve, pedem fotos no currículo. Sem dinheiro, sem saída, cansada de lutar, sinto um pouquinho de inveja.
            Conversamos sobre o estudo e o trabalho dela. Está trabalhando com doentes terminais. Tem respaldo, já trabalhava antes como voluntária nos hospitais, com grupos espíritas.
            O telefone toca, ela sai correndo para atender, a conversa se prolonga. Vou ao banheiro, aproveito para olhar todos os quadros, pintados por ela, sob inspiração transcendental. Sento-me de novo, no meu lugarzinho e aguardo educadamente. Ela volta. Pronto. Agora podemos conversar. Pergunto assuntos profissionais, ela não resiste e começa a falar... O telefone toca. Ela dá um pulo e atende novamente. É importante, precisa combinar, planejar. Quando desliga, volta, se desculpa. Leva-me para a cozinha, como é grande. A empregada passa roupas e cozinha batatas, que soltam fumaça. Fiquei preocupada. Passar roupas e cozinhar batatas não combina. Deixei as batatas e as roupas.
             Conta que cuidou de um senhor, com câncer, até morrer. Conseguiu controlar a dor e confortá-lo. Assinou contrato com um convênio, ficou eufórica. Trata de um rapaz, artista. Não trabalha, não ganha. Sua arte consiste em imitar Sílvio Santos. Quando ele puder, pagará. Diz agora, ao telefone, para ele: "Não esqueça do raminho de arruda..."
            Descubro que é hora de sair, levanto-me e despeço-me. Ela não insiste, não me convida para almoçar, apesar das batatas. Ela desce comigo até a porta da rua e nos despedimos novamente. Sigo pelas ruas, pensativa e me sentindo meio sozinha.
            Há tantos caminhos a seguir e a gente pega um e segue somente aquele e se frustra pelos outros. Vou pensando que ela está bastante afastada de mim. Chegou a mencionar de modo vago, momentos ou fases de grande sofrimento e que pensou muito em se abrir comigo. Não se abriu. E agora, não nos aprofundamos nisso.
            Sigo sozinha, quarteirões e quarteirões nos Jardins, antes de tomar um ônibus. O tempo fecha, parece que vai chover. Tenho vontade de encontrar alguma forma de não chegar à casa. Chego.
            A amizade que sinto por ela não morreu, não esmoreceu, não mudará. Somos o que somos. Há uma porção nela que é irmã de uma porção minha. Disso sempre saberemos.

Djanira Pio

Do livro: Fragmentos, Ysayama Editora, 1998

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