E quem é você?
Em plena calçada movimentada, criou-se um círculo de gente. Muitas pessoas, porém, passavam por ali apressadas. Enquanto que outras sempre, sempre, sempre parecem estar atrasadas. Mesmo quando não estão... Estão! Dentro do círculo, atônito, permaneci observando os detalhes, as circunstâncias, as fragrâncias, as feições, as expressões nos olhares, as palavras...
No meio do círculo, a cena que se via era:
Uma mesa, um bonito aquário de vidro com água limpa, pedras coloridas no fundo e planta de plástico simulando vida. Ao chão, o peixe. Cinza mesclado, olhos esbugalhados, se debatia contra as pedras quentes do calçamento, suas guelras abriam e fechavam num rítimo descompassado.
Cada pessoa ao redor tinha a sua idéia, a sua fórmula ou seu pudor.
Uma Loba de vestido vermelho, pele muito branca, cabelos longos à altura das delineadas saboneteiras, que complementavam as jóias que ela trazia a lhe enfeitar o pescoço; esguia, do alto do elegante salto também vermelho, franzia a testa com precavido cuidado, encobrindo os lábios com a mão, como tentasse, sem obter sucesso, guardar só para si o -OH!- que lhe escapuliu dos lábios de importado batom cereja.
O homem mediano, engomado, trajava terno azul marinho, camisa cor de pêssego desbotada e gravata cinza com grossas listras vermelhas, exalava por todos os poros a essência enjoativa de naftalina. Seu cabelo preto, brilhoso, obediente – obediência vendida em farmácia, na consistência gel - ele não parava quieto, falava em altos brados e exagerados gestos, tentando fazer acreditar que eram suas, as palavras que lia.
Uma senhora mulata, trazia na cabeça um tecido branco enrolado com esmero em forma de turbante, possuidora de um nariz de amplas e escancaradas narinas, lábios grossos, eroticamente avantajados, vestia saia e blusa; combinando entre si suas cores antagônicas. O tecido era tão fino, que sua grande bunda o comprimia, estampando em alto relevo os desenhos da renda de sua maiúscula calcinha. Ela contorcia o rosto, levantava as sobrancelhas, deixando transparecer em sua face o que pensava: “Que falta do que fazer dessa gente... Tudo isso por causa de um peixe que nem dá para comer?... Pequeno desse jeito, que serventia isso tem?“
Mas dali não arredou o pé, esperando para ver o “bicho” que ia dar.
Um homem magro, com provável idade intermediária, entre a instrução que não teve e a pele que precocemente encraquelou. Rude alma que ria e ria... e ria. Mostrava sem pudor, o espetáculo grotesco da Ordem e do Progresso Nacional. Revelando excessos de luas e ausência de estrelas, no céu absorto de sua boca edentada. Do bolso traseiro rasgado de sua bermuda rota, apontava para fora boa parte de sua cédula de identidade amarrotada. — Registro Geral que comprova ser ele, mais um entre tantos... Ilustre desconhecido Cidadão Brasileiro.
Eu o olhava, enquanto que ele repetia às gargalhadas:
— Peixe burro! Peixe burro! Pulou do aquário o otário, se fudeu!!!
Um grupo de adolescentes todos com o mesmo uniforme de escola cara, exibiam ali e sabe-se Deus mais aonde, as matérias que mais se dedicaram aprender, as compradas pelas $$$ e as da estética televisivamente importada. Riam–se debochados e sugeriam uns aos outros:
— Vai lá! Pisa logo! Acaba logo com isso que já estamos atrasados para a Lan .
Um menino branquelo que aparentava ter entre seis e sete anos, não mais que isso. Com lindos cabelos encaracolados em variados tons de castanho, abaixou-se perto do peixe, que continuava lá, se debatendo. Começou então a cutucá-lo com um canudo de refrigerante, enquanto observava atentamente as reações do animal dolorido.
Uma menininha com lindas sardas e tranças ruivas, unidas num enorme e desproporcional laçarote de fita verde, timidamente aproximou-se do menino e com
a voz baixa o questionou:
— Posso cutucar ele também? Ele é mole ou é duro? É gosmento? Fede? Será que tem dente? Será que sente como a gente?
Ao que o menino, nem levantou a cabeça para responder:
— Você tem também um canudo? Descubra você! Você acha que eu vou colocar o nariz nele, para saber se fede?
Pela primeira vez meus olhos encontraram-se de frente, com os olhos do centro das atenções, busquei-o de certa forma diferente.
Encarando-o tudo ficou claro, sem que eu me desse conta, a (con)fusão se fez.
Não havia dúvida...
O peixe... era eu!
E você é quem?
Jaqueline Saraiva
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