Femininamente branca
Virgínia se movimentava nua pelo quarto de paredes coloridas. Tinha a estranha mania de relacionar sensações a cores. O branco representa a morte para os japoneses. O branco representa igualdade na França. O sentimento do pai por ela era branco; de tão sensato se confundia com indiferença. Sua mãe a amava com o azul profundo da intensidade calma do mar. O cheiro do seu perfume era adocicado e duas gotas dele, atrás da orelha, eram suficientes para denunciar qual era o destino daquela noite. Estava apaixonada de uma forma tão vermelha que mal podia esperar o momento do encontro.
A escolha do que vestir é o momento crucial. Fazia tempos que não sentia essa ansiedade causada pelo amor. Uma meia-calça errada podia ser o fim do romance. Se fosse muito arrumada, iria acabar com todo o mistério, revelaria sua desesperada necessidade de aprovação. Tinha que parecer comum, sem, no entanto, deixar de ser especial. A intenção maior da roupa é provocar o seu próprio desuso. Mulheres se vestem para serem despidas. Mulheres se perfumam para serem lambidas.
Não conseguia parar de imaginar as mãos do seu amor dentro de uma das fendas profundas de sua saia preta. O bico arrepiado do peito foi camuflado por um sutiã meia-taça. A blusa de decote quadrado parecia ser uma boa solução. O sapato de bico fino deu o ponto final. Releu o endereço, jogou os cabelos para trás e saiu em passos apressados.
Pontualidade nunca foi seu forte apesar, de todas as tentativas. A voz rouca do locutor da rádio anunciou every breath you take . Que coincidência! The Police era a trilha sonora desse seu romance. Tinha que dirigir com mais velocidade, senão não chegaria a tempo. Estava novamente obcecada. Até a cozinha da sua casa tinha a cara da sua nova paixão. Cada detalhe do mundo lhe dizia alguma coisa. O outdoor estampava uma foto de um beijo ardente e parecia querer lhe avisar que tudo iria correr bem.
Uma chuva rala começou a se espatifar no pára-brisa. Iria estragar seu penteado mas não tinha problema. Uma mulher de verdade sabe se adaptar a qualquer circunstância.
No final do namoro com Marcelo, o cheiro de seu cigarro não mais a importunava. Aprendeu a lidar bem com os obstáculos amorosos. Depois de um tempo, ninguém é mais perfeito. A característica adorável torna-se intragável. Os homens sempre sumiam no momento mais intenso da relação. Só uma mulher pode entender a dor de guardar, em caixas, fotos e cartas de amor. Se ela sobreviveu a isso, nada poderia ser pior. Essa era sua única esperança.
Chegou ao estacionamento e este estava lotado. Maldita lei de Murphy! Tudo sempre dá errado, quando estamos com pressa. O Soneto de separação começou a tocar. Seria um sinal? Quem era mais forte, Vinícius ou o outdoor? “A vida tem que ser vivida aos poucos”, pensou. Encontrou uma vaga estreita e estacionou.
Apesar da chuva, tudo nela queimava e ardia. Entrou no prédio sentindo o conhecido embrulho no estômago. “Dessa vez vai ser diferente”. Olhou-se pelo espelho do hall, ajeitou o cabelo úmido e apertou a campainha.
Betty abriu e estava diferente do que tinha imaginado. Usava um vestido com estampa esotérica e tinha na mão um Cosmopolitan.
Nos pés, uma despretensiosa sandalinha sem salto. Era daquele tipo que adora o céu, os planetas e as plantas. “Talvez, para ela, eu não passe de uma brincadeira vestida em uma saia preta”. Uma série de pensamentos começou a surgir. “Ela está vestida muito simples, talvez não dê tanta importância a esse nosso encontro”. “Não, talvez ela tenha pensado que, caso se arrumasse demais, iria deixar explícitas suas intenções”. Estava confusa e não sabia o que achar.
Seria para Betty apenas sexo? Sexo é a coisa mais medíocre da existência humana. Qualquer pessoa pode fazer. Ela queria que Betty sentisse orgasmos não apenas quando transassem, mas também quando ouvisse The Police e lembrasse dela. Ela queria fazer sexo apenas como extensão lógica de seu amor. Ela queria que Betty dissesse que nunca tinha sentido nada parecido na vida e que agisse menos pensadamente. Não se sentia bem em ser mais um velcro. Queria encontrar nela um sentimento tão vermelho quanto o seu.
Beijaram-se e sentaram-se no sofá. Se Madonna podia ter sido, ocasionalmente, homossexual, por que ela não? Aquela experiência não apagava seus instintos maternais. Um dia, iria se casar e ter bebês rosados. Se continuassem juntas, podiam encontrar um doador de esperma, adotar uma criança, sei lá! Quando falou sobre isso, Betty desconversou, e esse foi o motivo para o término. Betty agiu como se fosse um homem. Betty agiu de uma forma branca. O branco é o oposto do vermelho. Não existe paixão indiferente e racional.
Quando recebeu o telefonema, no dia anterior, seu coração gelou. Tinha esperado dias por um pedido de desculpas. “Esse encontro pode ser uma volta”. Sempre quis ser correspondida. Achava que uma mulher saberia bem o que é amar loucamente. Sua paixão por Betty tinha sido inventada por suas carências emocionais. Antes, nunca tinha pensado em nenhuma vagina alheia. Marcelo a tinha abandonado porque estava ficando sério demais. Um dia, no bar, Betty sorriu, e foi o suficiente.
Se fosse vivo, Freud a teria definido como uma invertida ocasional. Só se deixou envolver com Betty porque estava beirando o abismo pessoal.. Mulheres se adaptam bem a tudo. Sua libido se adaptou, temporariamente, a curvas. Precisava amar, só isso tinha relevância. “Uma mulher, jamais me trataria com a falta de consideração de um homem”.
Estava ficando tarde, e Betty estava com as unhas crescidas. Disse que sentiu saudades, mas queria que ficassem apenas naquilo, uns beijos e mais nada, que se amassem gratuitamente, sem maiores obrigações. Era como se fosse Marcelo, só que usando palavras sutis. Sim, porque a insinuação delicada é arte exclusiva das mulheres. Elas sabem muito bem como provocar falando pouco. Mulheres sentem prazer em machucar delicadamente.
“Vá à merda”. Percebeu que Betty estava sendo femininamente, branca. Bateu a porta e saiu com seu coração quebrado. Bem que Vinícius tinha tentado avisá-la das artimanhas daquele outdoor.
Renata Belmonte
Do livro: Femiminamente, Casa das Palavras, 2003, BA