Só mentiras
Acordei com uma puta ressaca. Muita birita a noite toda. Orgias, sexo barato em lugares públicos, exposição da carne pela madrugada. Os gatos fazem assim. Gritam a noite toda, ninguém vê. Só ouvem. Eles estão pelas ruas, consumindo-se uns aos outros. Se arranham, se unham, mostram as garras. Orgias, muito sexo, amores noturnos.
Só os vencedores vivem a madrugada. Depois, o dia é mais um dia. A noite não, são todas elas, diferentes umas das outras. Pode ter lua, pode não ter; pode ter estrela ou não; a lua pode estar cheia ou minguando, quem sabe? Assim passam as noites; quentes, às vezes frias; silenciosas ou barulhentas. A minha noite foi quente, barulhenta, com lua, com sexo, com bebidas, pernas tateando um lugar de apoio no espaço vazio achado dentro do carro; pernas passando por cima de pernas. Noite tumultuada, sôfrega, úmida, carro estacionado na rua deserta. A solidão das ruas na madrugada é um convite pra quem namora.
Seis e meia da manhã. Dia seguinte. Mais uma vez a crueza de ter que acordar cedo pra sair pra trabalhar. Dor de cabeça. As luzes embaralhando a visão. Barulho. Meu pai me enganou dizendo que o trabalho enobrece o homem. Que nobreza há no trabalho? Trabalho sempre para alguém, nunca para mim. Não há nobreza nenhuma, foi uma grande sacanagem o que ele disse. Disseram para ele e ele repetiu pra mim. Foi isso. Só pode ter sido isso. Ou será que ele me odiava tanto, pra mentir pra mim? Se eu descobrir que ele fez isso comigo...
Traição.
Acordar todos os dias as seis e meia da manhã. Fazer de conta que tudo está uma maravilha; sair de casa, ver gente saindo de casa fingindo que tudo está bem. Chegar para trabalhar e ouvir que tudo ficará bem no fim do mês. A mesma coisa sempre: o fim do mês vem outra vez. Tudo recomeça, faz parte da história: recomeçar. É necessário recomeçar a história desde o início, contá-la várias vezes..., recomeçar, repetir tudo. É assim:
Era uma vez... e todos viveram felizes para sempre.
Era uma vez... e todos viveram felizes para sempre.
Era uma vez... e todos viveram felizes para sempre.
Eu fico contando histórias. Nenhuma delas tem pé nem cabeça; começo ou fim, herói ou vilão. Elas acontecem. Mais nada. Às vezes tem um vilão sim. Sou um grande mentiroso. Finjo para mim mesmo que tudo está bem. Eu sempre contei histórias. Às vezes conto que vou trabalhar e ganhar dinheiro. Comprar uma casa e viver uma vida decente como os caras que têm a minha idade, mas não têm a minha aparência. Todos muito sérios. Cabelos cortados e penteados – caras dignas de respeito - barba feita, orelha limpa, calça lavada com a bainha feita. Eu, mais que parasita, descabelado, barba por fazer, fico aqui escrevendo mentiras como aquelas em que as pessoas dizem que está tudo bem. Uma maravilha. Mas contar histórias, também é como sair para trabalhar e dizer que está tudo bem. Também é uma mentira. Se somos todos uns mentirosos filhos da puta, eu posso mentir sem me sentir culpado. Meu pai mentiu para mim quando disse que o trabalho enobrece. Porque será que mentiu pra mim? Ele bem que poderia ter dito a verdade: “meu filho, o trabalho é uma puta de uma sacanagem que fizeram com a gente. Inventaram um pecado que eu nunca entendi direito o porque disso, e obrigaram a gente a trabalhar como bestas. Somos todos culpados, embora não saibamos o porque, e é bom não reclamar muito, mesmo, senão a coisa toda pode ficar uma cagada pior ainda”.
Puta que pariu, porque essa história de paraíso não poderia ser igual a todas as outras? Um final feliz, um beijo na princesa e um castelo encantado. Pronto. Não! Tiveram que criar uma história que nos colocasse como culpados sem sequer termos feito algo de errado. Meu erro então foi nascer? Porra, isso está errado. Pecado original? Alguém... uma pessoa, em algum lugar, algum dia, escondeu o livro que tinha a história contada de forma certa, só de sacanagem. Não sei ainda o que ganhou com isso. Ficou prisioneiro da própria história. Que babaquice. Como pode um idiota ficar prisioneiro da própria história. Eu prefiro escrevê-las. Assim, pelo menos crio meu próprio mundo, um mundo meu, onde não haja pecado nem perdão, nem lei e nem ordem; certo ou errado. Hedonismo? Sem essa de falsas morais. Eu bebo, fumo um baseado, o dia passa, esqueço dessa merda toda que tenho que comprar e acreditar que é boa. Eu? Eu não! Prefiro contar a mentira mais deslavada do mundo. Eu não vi mesmo onde foi que aconteceu o tal pecado, eu não estava lá para ver. Pelo que parece, ninguém estava lá para ver. Dizem que só tinham duas pessoas no mundo. Um homem e uma mulher nus, e tudo era perfeito. Então que papo é esse? Ninguém viu onde começou? Pra mim isso cheira a vigarice. Alguém saiu ganhando com isso. Só pode ser. Não faz sentido de outro jeito.
Quando eu era guri, um dia disse pra minha mãe que não teria aula na escola durante uma semana. Fiquei uma semana em casa. Foi muito bom. Gostei. Depois que passou a semana, saía para a escola mas ficava zanzando pela praça. Muito bom. Aquela filha da puta da professora que quebrava régua em mim não me atormentava mais. Ufa! Tudo bem, fui descoberto, o sonho acabou. What can i say? O que posso fazer? Não há crime perfeito mesmo. Mas eu tive uma semana só minha, sem lei e sem ordem. Doces na padaria da esquina, bombinhas no meio da praça, paqueras com a Neuza. Ah! A Neuza tinha uma xoxota maravilhosa. Eu jogava o lápis no chão só para poder abaixar e ver a xoxota dela por baixo da sua calcinha transparente. Isso sim é que era o paraíso. Nenhum pecado, nenhum perdão. Que visual. Bati muitas punhetas pra Neuza. Sem culpa.
Contar uma história é assim: amanhã não vai ter aula. Claro que é mentira. Qual história que não é mentira? E aquela mulher que ficou enrolando o Califa durante mil e uma noites, quanta mentira. Quem acredita em Papai Noel? E cegonha? Quando a gente é guri contam um monte de mentiras pra gente ficar olhando e ouvindo com cara de abestado e depois a gente vai e briga quando um mané diz que aquilo não é verdade. Porque fazem isso com a gente? Depois querem lavar nossa boca com sabão porque não falamos a verdade. Então porque nos criam com tantas mentiras? É, só pode ser sacanagem.
Caio dentro. Eu sou um mentiroso compulsivo. Digo bom dia, todos os dias, sabendo que ali na próxima esquina corro o risco de perder tudo o que tenho para um assaltante; sei que no Oriente Médio está uma cagada só. E com tudo isso, acordo e digo: bom dia! Já começo meu dia mentindo. É, eu sei que isso, dizem, é errado. Mas quem não mente? Sair nas ruas do Rio e dizer que é a Cidade Maravilhosa. Porra! Quer maior mentira que essa. Trepar dentro do carro e ficar olhando por cima do banco para ver se não vem ladrão levar o carro ou a PM levar dinheiro dizendo que estou cometendo atentado ao pudor. E a falta de pudor para levar o meu dinheiro? Não há pudor. Eu faço sacanagem no carro. Os caras fazem sacanagem levando o meu dinheiro dizendo que é atentado ao pudor e à lei e à ordem e aos bons costumes. Pro caralho essa tal de lei e ordem. Lei de cu é rola. Se eu disser na delegacia que levaram meu dinheiro porque estava trepando no carro, eles vão dizer que estou mentindo e vão arranjar outra história pra me ferrar. Se é pra mentir tão descaradamente, pego meu computador abro o Word, fico vendo aquela tela branca na minha frente esperando surgir alguma idéia na cabeça. Pronto, a idéia vem: penso que estou em um lugar paradisíaco com uma louraça... não, com uma louraça não. Com a Gisele. Isso! Fazendo um amorzinho maneiro. Ela me abraça, me beija, me amassa todo. Uivo! Isso, eu uivo de prazer, sou o Lobo Mau. Ela é a Chapeuzinho Vermelho. A Vovó saiu para dançar faz tempo. Os caçadores estão enchendo a cara no boteco da esquina, a casa é só nossa. Eu e a Gisele juntos. Que foda!
Pronto! Escrever é assim: simples. Todo escritor é mentiroso. Alguém acredita no Dom Quixote? Vai mentir assim na puta que o pariu Cervantes. O cara mentia bem. Com estilo. Eu queria ser um grande mentiroso como ele. Teria comido muito mais mulheres que já comi. As mulheres adoram ouvir mentira. Parece que nasceram com um dom todo especial para ouvir mentira. Quando a gente não mente, elas ficam putas da vida. Falam mal da gente, chamam a gente disso e daquilo. Falar a verdade para uma mulher?! Tá fodido! Nem estando alucinado se pode falar a verdade para uma mulher. Elas não gostam, só isso.
Já pensou? Encontrar com a Neuza no centro da cidade assim ao acaso.
- Oi Neuza.
- Oi Miguel.
- Até que enfim te encontrei sozinha Neuza.
- É mesmo Miguel.
- Vamos dar uma trepadinha naquele motel perto do Palácio das Ferramentas na Buenos Aires. Sempre tive o maior tesão em você.
- Eu também Miguel. Sei que você ficava vendo a minha calcinha por baixo da carteira. Eu levantava a saia só pra te deixar com mais tesão.
Ela aceita. É a maior trepada desde os tempos da faculdade. Todas as posições do Kama Sutra. É demais.
E aí, chegar em casa. A mentira: - Querida você não sabe o que aconteceu. O pneu do carro furou. O estepe, você sabe, eu nunca calibro, estava vazio e aí tive que chamar um reboque. Tive que ir a pé até o Balança Mais Não Cai. Lá tem um reboque...
Mas tem que sujar a mão. Esfregar bem a mão no pneu, passar um pouco daquela poeira preta que fica agarrada no pneu, no rosto. Tem que ser bem real, com riqueza de detalhes. Mulher gosta da riqueza dos detalhes. Se não tiver muitos detalhes elas desconfiam, acham logo que é armação.
Aí eu encontro com a Neuza na rua. Um encontro simples e casual. Nada mais que isso. Coisa simples. Um beijinho no rosto. Tchau. Acabou.
Chego em casa e digo que encontrei com a Neuza na rua e não aconteceu nada, foi só um encontro de ex-colegas de primário.
- Não me venha com essas mentiras. Eu sei muito bem o que você fez com aquela galinha. Ficava vendo a calcinha dela por baixo da carteira e vai dizer que não aconteceu nada. Você comeu ela. Seu mentiroso de uma figa, salafrário, ordinário....
Escrever é assim, quanto maior a mentira, melhor o texto. Os jornalistas entendem bem do assunto. A cada dia uma matéria diferente. Assuntos variados. Tem que ter criatividade.
Samuel Punzi