Panis et Circences

    Quando Deus caiu em si e se deu conta da merda que fizera, já era tarde. O mundo, aquele mundo que Ele criara do Verbo, desandara em bizarras conjugações. "Vernáculo medíocre", deu de resmungar pelos cantos, horrorizado´perante a Obra parca e medíocre a refletir no espelho uma provável mediocridade. "Se a mediocridade foi por mim criada, logo medíocre sou", afirmava aos mais íntimos após muitos copos de vinho.
    Não sei se pelo porre divino ou pelas cicatrizes que o horror lhe criara na face, os anjos o abandonaram, levando com eles as "boas" almas numa rósea revoada.
    Assustados, débeis e mal agradecidos, os anjos (pela primeira vez!) não cumpriram os salamaleques da boa educação e foram embora sem despedidas, levando debaixo das asas algumas coisinhas. Surrupiaram a prataria do palácio, as jóias da finada Deusa, a porcelana chinesa, a música, as telas, as esculturas, as tragédias e os dramas e livros criados por uma "cambada de malucos" que Deus insistia em se cercar.
    A razão que os fez surrupiar as obras de arte estava a léguas do bom gosto e do refinamento. Os anjos, por assexualidade ou mesmo por falta de caráter, não tinham ouvidos nem olhos nem alma para apreciá-las, mas tinham raciocínio matemático para vendê-las ao primeiro receptador que aparecesse. "Essas drogas valem dinheiro!", repetiam em coro ao mesmo tempo em que redigiam o anúncio para os classificados do Diário Celestial.
    Como era de se esperar, o anúncio surtiu efeito e logo os anjos se viram cercados dos mais variados tipos de receptadores. As obras foram vendidas de maneira rápida, eficiente e menos lucrativa do que o esperado. Mas como não tinham ouvidos nem olhos nem alma para o verdadeiro preço da arte, os anjos se contentaram com os parcos trocados arrecadados . Satisfeitos enfiaram os tostões nos bolsos e junto com as "boas" almas torraram o dinheiro numa loja de 1,99.
    Carregados de flores de plástico, imãs de geladeira, bichinhos de pelúcia, pregadores de cabelo, fôrmas de silicone e de todas as bugingangas made in Taiwan ou China, rumaram para outras bandas do céu, para um lugar iluminado por lâmpadas azuis e perfumado por duvidosa essência. E lá criaram um novo mundo. Um admirável mundo novo construído de acordo com um bizarro manual de instruções de um DVD mais bizarro ainda. Não contentes, inventaram um novo Deus que, por gagueira ou cópia mal feita, não conseguiu enunciar o Verbo e acabou criando o mundo a partir de uma Sílaba.
    Bojudos de tanta felicidade falsificada, entronaram o clone num patético trono iluminado por néon. E como o sustento de um Deus assim custa os olhos da cara, criaram uma forma de sustentá-lo, erguendo no céu uma nova Las Vegas.
    Quando os anjos partiram, Deus, o verdadeiro, recuperou a lucidez divina. Por estar de saco cheio das chatices bem comportadas, dissimuladas, falsificadas, das "boas" almas, não sentiu falta delas. Não lamentou pela prataria (dava uma trabalheira polir!) nem pelas obras de arte roubadas  (os autores haviam ficado!). Pela primeira vez em milhões e milhões de séculos, o Verbo, o vernáculo sagrado, recuperou a transcendência e ecoou solto, livre como um risco de Picasso.
    Dizem que naquele dia o céu incendiou de estrelas e Deus foi visto dentro da lua abraçado ao Diabo...

Marcia Frazão

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