Cinderela VESPERTINA

          Escuridão profunda, apertar de olhos, reconhecer Raposa Prateada.

          De passagem, espelho na luz rosada do abajur — cabelos negros emoldurando o rosto pálido, susto de tesão e medo. Com força e sedução, boca vermelha, pestanas de rímel forte, batendo, pássaro arquejante.

          Ele sinalizou com o isqueiro, sorriu de leve, dentes brancos, mal de amor. Lentamente despindo — o casaco, a alma, o real.

          A mão pesando nas costas nuas, pecado do improvável, flor da ânsia de enfim morrer. De amor. Dançar era agarrar-se ao febril suspiro do outro, perder-se na carne alheia, embriagadora mistura de odores, suores, hálito forte de verão eterno. E rodopiar na música de ontem, encantar-se de novo, fada de seu próprio destino, carruagem. E percorrer caminhos de castelo.

          Eu sei que vou te amar... por toda a minha vida eu vou te amar...

          A música é saber da mentira, é querê-la toda, inteira, apertando as coxas nas pernas fortes ah, meu amor...

          Voz que sussurra líquida no ouvido, boca roçando a orelha nua, pelada, despida de todo o pudor, mente pra mim, me diz as sacanagens que eu adoro ah meu amor, mente pra mim.

          Enlaçados no engano, música escorrendo em volta, dentro, saturando, perfume de gardênia, me ensina aquele tango, você vem?

          Por toda a eternidade curta na escuridão do instante, unido sexo, borboleta febril, seu peso sobre mim, quando será? talvez jamais. Mas não importa, amor. Vamos então? até que a hora escorra pelo ralo, até que a carruagem vire abóbora. Até o momento, faca do real.

          Tenho que ir... Quando te vejo de novo? Sempre, nunca, talvez, tenho que ir.

          Sapatos resvalando no chão liso, pressa de não perder. Sou prisioneira. Mais um beijo de longe, a calçada, chuva fina e fria, luz que ofusca, táxi, teu cheiro, limpar os olhos, a boca, o corpo, voltar a ser ninguém.

          A porta entreaberta, mortiça, televisão ligada.

          — Demorou...
          
— Vou fazer o jantar, trouxe a cerveja.

          Arroto satisfeito, barriga salta da calça.

          — Serve pra mim. Vou comer aqui mesmo, vendo o jogo.

          Carniça de fritura, trapos rotos.

          Madrasta assassina a fada, apunhala a madrinha, derruba a carruagem e enterra o coração. Pesado e fundo, extinta maravilha.
          Nem sapato deixou.

Maria Helena Bandeira

« Voltar