O DEMÔNIO

               Mora comigo no subúrbio um demônio empalhado.
               No princípio foi tudo uma apreensão fatigada saber dele a existência, tentar ignorar-lhe as presas e jamais contar sobre sua cabeça, no rosto dois olhos-de-gato, o número de chferes. Porque ele não era um Unicórnio e nem sequer o Demo Oficial. O que seria então — ele que já se mostrava íntimo do sótão e das estantes? Convivia comigo, cá na várzea, apenas pra me meter medo. Ou para provar que só se é prosaico depois de se saber sublime.
               Tentanos extensas e diversificadas formas de convivência mas apenas chegamos a relativa trégua quando, como num acordo tácito, aceitou que as noites fossem minhas; de seu lado, teria as tardes, as manjãs e sobretudo os domingos.
               Enquanto se entretinha em seu jogo-de-dados, pacientíssimo & prodigioso, com certeza preparava para o rabo-da-manhã, só hoje constato, o próximo lance. Alguns deles (como não admitir, sem insinceridade?) fantásticos, dignos mesmo de um demônio fulgurante.
               Com a insônia sabia brincar até me estourar os miolos. Mas não era de todo mau: concedia-me, às vezes, o ritmo de um poema, a mirada de uma lua na tarde, a luz de uma saudade à toa, e se eu quisesse, poderia ter feito dos meus dias médios & michos, uma aventura de enredo fascinante. Fui eu, eu sei , eu sei, que não quis experimentar do incêndio a volúpia da chama e brasa.
               Os dedos de unhas longas e delicadas — e nisto ele era um demônio como que recortado de uma ilustração mórmon — me apontou sendas tão enlouquecidas, tão incomuns, que tremi ao menor sinal de indecisão na encruzilhada.
               Não precisa me dizer. Tenho a consciência de que sempre fui o seu patife exemplar que, ao final, acaba batendo em retirada. Protegido e morno, ao ninho pacífico de lençóis & noites, que eram minhas, murchei a cada transe, a cada aceno da vertigem dele ao clarão do dia.
               Não o mereci com o devido cuidado.
               Talvez por isso, só por isso, que ele também deu pra ficar ensimesmado, assim entre o grogue e o triste, e foi definhando, a cada dia mais pálido e ainda mais magro, e terminou concluindo que à sua existência faltava um sentido.
               Não que tenha morrido. Demônios não morrem. É que agora encolheu, perdeu aquela graça insistente & irônica, e eu o mandei empalhar, para que não apodrecesse, e o meti no sótão — entre aranhas, possíveis escorpiões, picomãs, lacraias, poeira e o confuso encanamento que vai dar na caixa d´água.

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