Chacina de Unicórnios
Kabuumm!
POU! CRASH! VUUSHH! SOC! UGH!
Kabuumm!
Chamando todos os carros! Chamando todos os carros! Ligue o sinalizador antes que seja tarde demais! Vocês jamais me pegarão! Seus tolos! Ha, ha, ha! Chamando todos os carros! Em questão de segundos tudo estará terminado! Temos que evacuar esse planeta o quanto antes! WHYYONN! WHYYONN! WHYYONN! Rápido, por ali! Cortaremos caminho pela passagem estelar! Não podemos estar muito longe! Ligue o sinalizador, idiota! Chamando todos os carros!
Todos permaneçam em silêncio. O Reino das Onomatopéias é uma clareira de partos. Um local sagrado, falando mais empolado. Tirinhas sujas de nanquim. Balões enunciando gritos cósmicos. Tudo é cósmico e nada existe. Eu não quero existir, eu quero chegar ao fim da história. Até o próximo número. & o garoto sujo de sorvete grita na sacada da varanda "chamando todos os carros!" enquanto a mãe faz o almoço. É tudo em que ele acredita. E é tudo o que alguém precisa acreditar. Palavras baratas e corridas, vagabundeando por detrás de imaginações febris de guerreiros que cabulam aula, conspirando o universo, enquanto suas mães fazem o almoço (e suas professoras os amaldiçoam).
Garotos amaldiçoados no centro de uma ciranda de infâncias. Dando as mãos a heróis baratos. Frases monossilábicas. Expressões de vida na cara da morte opaca. Santa conspiração, Batman! Santa ignorância!
Charlie Parker, Lester Young, crooners dos anos vinte, solando um jazz onomatopético para essas crianças sem futuro. BEEBEEDOOBOOPBAAPBEEBEEDOOBAABOOP!
boop
boop
beep
doop
diz Betty Boop
a noiva de nanquim.
— minha eterna consorte —
Eu me lembro de você, Betty Boop, sussurrando notas musicais que jorravam das mãos do bom e velho Max. Você era um beijo na cara da censura. Nunca um tapa. Sempre um beijo. Musicado. Você, esperando que Scott Fitzgerald lhe tirasse para dançar, quebrando eternas taças de cristais na sua festa de cartolinas e cartoons. Uma véspera de natal. Para sempre uma véspera. Me dê um beijo, Betty Boop.
& a textura áspera das páginas transformam as mãos do garoto em flechas mágicas. Milagres borrados. Seus olhos são uma visão visionária. Flamejando de fúria e inspiração. Jamais poderia ir pra escola essa manhã. A cavalaria se aproxima. Vinda do oriente. Cavalos musculosos urrando e espumando em galopes que atravessam os céus nublados com exércitos de nuvens. Todos os dias são seus últimos dias. Estátuas eqüinas de bronze. Uma guerra burlesca toma corpo. Criação nômade vendendo ingressos pra essa noite. A noite da pré-estréia. DEUS, EU SOU UM TORPEDO DE SIBILOS!
Ele espera pela salvação no ponto de ônibus. Debaixo do dia e do meio-dia, ao longo do rush, tentando chegar onde nenhum homem chegou. Um punhado de trocados no bolso. Terra batida. Sonhos viscerais. Vísceras pendentes dos edifícios cor de barro. Não há espaço para as cores. VAN GOGH FALANDO AS CORES DOS POBRES. Quadrinhos de luz aguda. Aos gritos. Animações soluçando o infinito nas telas de uma matinê. & a infância prostituída por notas vermelhas e surras cegas economiza os trocados para se sujar em sorvete. Para chamar todos os carros. Um raio multicolorido no céu cortando pássaros e aviões. O garoto espera pela sua vez. Ele é nobre. Tudo é cobre. E pobre.
A infância é célere e tênue. Hordas caminhando na mina de ouro. A sombra do meio-dia.
Ele tomou uma surra
e perdeu dinheiro
e o ônibus
e ganhou um milhão de risadas
no escárnio dos dias úteis
Ele perdeu o seu futuro
perdendo no vestibular
antes de chegar ao vestibular
derramando sangue por vestíbulos esquecidos
arrastando esperanças
Ele perdeu a hora
e cabulou a aula
e salvou a sua alma.
Horas de escape. Horas dentro das frestas das horas.
Um dia ele será consumido pelas semanas. Deglutido por precauções. Exorcizando demônios que habitam os desertos. Areias cálidas mutilando os poros de todos os povos.
Os demônios
são anjos disfarçados.
& o cara da banca de jornal lhe entrega o gibi e pega a sua grana. Ele sabe que todos eles são anjos disfarçados que um dia morrerão dentro da sombra do meio-dia. Todos os lugares pelo caminho cheiram à putrefação dos semblantes derrotados. Sonhos em decomposição. Ao menos nessa manhã ele está a salvo. Enquanto não chegar ao final da história, o mundo será uma exclamação e seus olhos serão mármore.
Ao menos hoje
a sua alma está salva.
Salva pela matinê.
Salva pelos carros
que cruzam as esquinas buzinando para transeuntes & testemunhas.
O planeta está a salvo.
& o Super-Homem
de Kripton
fez dele
o Super-Homem
de Nietzsche.
Nada explodiu e o fim está feliz para sempre.
A pupila de Deus foi tocada por seus mais devotos pupilos. Vermelha e cortante piscando pelos dias enterrados no fundo de um mar de deveres e obrigações. E cada vez que a pupila de Deus é tocada, uma nota vermelha é carimbada em currículos mutilados. Hanna & Barbera falam na tv YABAADABAADUU!! levando caravanas para longe dos olhos da Grande Inquisição. Marvel Comics transborda clareiras. Disney é muito mais do que os seus desenhos atuais tentam nos dizer. Disney é rato e pato e o reino animal e o reino humano. Nada dessa besteira bem comportada de desenhos que cantam baladas românticas lotando salas de cinema. Looney Tunes, quem poderia pedir mais de você? Sua loucura nunca se perde pela poeira do tempo. Looney Tunes, você é tudo o que alguém pode esperar de um louco. Onde está a Turma da Mônica? Onde vocês vão por esse labirinto de produtos publicitários? Schultz...o espectro de um jazz. & a Pantera Cor-de-Rosa.
Quem disse que os nossos jovens não lêem?
Vocês é que não lêem os nossos jovens.
Tudo por aqui é uma exclamação. e assim! nós! achamos caminhos perdidos! ilhas conquistadas! rubis! heróis! e! somente! assim! podemos! enxergar! os! anjos! disfarçados! por! detrás! de! tantos! demônios!
Todos os exilados são chamados para retornar ao planeta. A terra natal estará pronta para o festim de Natal. O perigo da extinção foi extinto com os ventos urbanos.
Action Comics
empunhando galáxias que explodem
em bocas descarnadas.
Habitando salas de estar.
Clamam exclamações
e eclodem balões
exclamando
o futuro
que se esconde
nas identidades secretas.
Uma revista em quadrinhos
é um unicórnio vivo
em meio à uma chacina de unicórnios.
Daniel Frazão