POEIRA DOMÉSTICA
O tempo fecha toda vez que invadem o meu espaço aéreo.
— Vem ver este sofá.
Na verdade, a imagem mais correta seria a do eclipse. O seu rosto, visto daqui debaixo, encobre quase a metade do meu campo de visão.
— E essa mesa de centro, dá pra dividir em quatro vezes.
Tenho a vista gradativamente embaçada. Um beijo se aproxima.
— Levanta, que a moça quer fazer o cadastro.
Estou experimentando a espreguiçadeira. Instalou-se uma preguiça generalizada no meu corpo. Uma letargia. Que calor!
Mesmo que eu não esteja olhando para nada, mesmo aqui, deitado nesta espreguiçadeira, ou, por outro lado, catatonicamente acendendo e apagando este abajur apenas para dar resposta às espextativas da vendedora, que vai extrair desse gesto uma longínqua possibilidade de consumo, já estão dividindo tudo por quatro (um dia dividiremos tudo por dois). Calcula mentalmente as medidas do quarto e compara com as medidas da cama. Dá com folga. Só me livro, fechando os olhos. Daqui a pouco vou estar dormindo e, depois, quando começarem os movimentos rápidos dos olhos, adentrarei a mata na companhia de cães perdigueiros.
Marcus Nascimento
Do livro: A palavra no espelho, Prefeitura de Belo Horizonte, 2003, MG
Enviado por Tânia Diniz