IMAGENS DO CAOS
O bombeiro subiu a escada com uma rosa na mão. Era uma rosa branca, mas eu diria pálida, com as pétalas já murchas, com a corola pendida. A escada está destruída, preta de fuligem. O bombeiro sobe de cabeça baixa, derrotado. Ainda lutará, mas é um homem derrotado. Uma névoa lhe empana a face, uma teia de aranha, uma teia da morte.
As paredes estão destruídas, blocos de cimento caem de todos os lados, queimados. São a imagem da desolação. Abrigamos nada, parecem dizer. Os corpos aqui debaixo são nada. A rosa branca como uma alma é depositada sobre um bloco escuro, pintado de fumo e luto. As almas sofrem sob as pedras, sufocadas, anuladas. As almas pertencem ao eterno, mas é uma paisagem desolada esse eterno esmagado sob as pedras da dor.
Barras de ferro impedem a passagem. Ferro retorcido, emaranhado, fecham essa prisão abafada. Pontas de ferro, nós de ferro, grades de ferro cercando o nada. Não há lugar para a rosa nessa prisão. Não há lugar para as almas. Deus não entra nesse lugar. Até Deus sufocaria estrangulado por essas barras de ferro. Deus, afasta de mim este cálice. A dor transborda, é amarga como fel, envenena, mata. É a dor do nada.
No chão, no meio da poeira, grandes pingos de lágrimas congeladas. São cápsulas vítreas, com sangue seco dentro, e um outro líquido, talvez pus. Há um gemido que não se ouve, parado no ar, grudado no cimento, escorregando, viscoso, pelas paredes. Destroços, trombamos com pedaços de vida, do que foi a vida. Esta pedra fuliginosa, que parece chorar, não é uma cabeça humana? Não são pedaços de corpos humanos que estou pisando? Mas pode haver algo de humano neste poço escuro?
Pedaços de aço no caminho. Pedaços de um avião tornado máquina de morte. Uma turbina, uma asa, um pedaço do que foi uma asa, monstruosos. Sabem a morte. Conhecimento frio da morte, sem qualificativos, sem esperança, sem nada. E sabor frio da morte, sem gosto, rançoso, pegajoso, que você cospe com nojo. Você não tem nojo das pessoas amadas, mas do que fizeram com elas, daquilo em que elas se tornaram. Você tem nojo de você mesmo. Você não é muito humano.
Haverá vida sob esses destroços? Haverá corpos humanos? Poderei chamar de humano ao que resta aí embaixo, nesse poço fechado? As cadelas farejam, mas não aprenderam a cheirar o nada. É o nada que mora aí embaixo. Por mais que tenha forma humana. Em que transformaram os meus entes queridos? Em que me transformaram? Quem vai pagar por isso? Estou pagando um preço demasiado alto. Não posso pagar sozinho por tão grande crime. Deus, tenha piedade de mim. Eu quero só um pouco de justiça. Se é que justiça possa ser aplicada aos poucos. Eu quero um mínimo de justiça.
Quem é o culpado? Esse crime não pode ficar esquecido. A impunidade é o maior mal deste país. Vai ficar mais um crime impune? O massacre foi muito grande. Foi muita crueldade, com frieza de aço e fogo e fumo. Frieza do aço entrando na carne, rasgando, rompendo os músculos que a agarravam à vida. Frieza do fogo consumindo num átimo os olhos, a língua, o sangue. O fogo vermelho como o sangue. Sem compaixão. A frieza do fumo se espirando no ar. Como se as almas se espiralassem no ar. Gemendo convulsivamente, desesperadamente.
Vislumbro um pedaço de céu por um buraco na parede. Um céu azul, límpido, feliz, como um escárnio jogado na cara do meu sofrimento. Não tenho mais o direito de ser feliz. Não tenho mais o direito de contemplar o céu azul. Ah, desse azul veio o pânico. Súbito, implacável, único em seu escárnio frio. De repente, eu já não era. Será que eu não valho nada? Quem vai pagar o preço da minha desgraça? Quanto tempo demorará para eu ser esquecido?
José Carlos Mendes Brandão