A QUARTA VÍTIMA

Ecídio era filho único, trabalhador dedicado, cuidava da propriedade, da mãe paraplégica, e do pai já convalescente Animava-o uma enorme energia, ordenhava diariamente as vinte vaquinhas curraleiras e entregava o leite, bem cedo, de carroça, aos clientes certos, no povoado, distante dez quilômetros.

Já há vinte anos mantinha essa rotina de trabalho. O recebimento da paga era acertado no sábado, ocasião em que fazia as compras, acertava as pendências, a farmácia, e o dinheiro, que sempre sobrava, era levado para casa.

Ocasionalmente, comprava mais uma vaca, um pedaço de terra dos vizinhos, fazia um melhoramento na propriedade.

Não se casou, pois dedicava o tempo ao trabalho, e ao cuidado com os pais; naquele dia, um sábado, fizera como de costume, e a noite, ao retornar, num trecho escuro, foi assaltado por dois encapuzados, que o amarraram, no alto de uma arvore, e fugiram a noite, levando a sua carroça, com o animal e os pertences, um fato inusitado, pois havia ocorrido pela primeira vez naquelas paragens.

Já tarde da noite, ainda amarrado, escutou rumores próximos. Vozes... Ficou calado, temendo serem os bandidos que retornavam para matá-lo. Eram os três ‘negões', como eram chamados no povoado, trabalhadores ocasionais, bebuns, arruaceiros, e que moravam numa choupana as margens do lago, e como almas penadas, trabalhavam e andavam sempre juntos.

Traziam amarrada a professora, filha do prefeito, a arrastaram, e a estupraram, e em seguida a libertaram após as ameaças costumeiras. Os três meliantes com certeza já tinham o habito desta prática nefanda, permanecendo impunes, em virtude do silencio das vítimas.

A bruxa definitivamente estava solta, era a segunda desdita naquela noite.

Pela manha seguinte, foi encontrado por um vaqueiro, seu vizinho, sendo solto, e a professora amparada por uma tia solteira que morava sozinha, que avisou aos pais que ela passaria uns dias por lá, escondendo os fatos constrangedores, por preconceito e medo do escândalo.

O tempo passou e Ecídio comprou carroça, outro animal, e a professora ficara noiva do tenente, vindo do Recife, e que fora nomeado delegado de policia do lugarejo.

Ficou com aquilo na cabeça, deveria contar para a vítima que ele era testemunha do estupro. Por várias vezes, abordou-a, mas na hora do relato, se calava; a professora parecia aguardar os acontecimentos, houvera sido estabelecido um ‘rapport' entre a testemunha e a vítima.

O casamento foi marcado, e seria a maior festa já efetuada no lugar. Ecídio continuava a pensar se deveria contar o ocorrido, desta vez para o noivo. Chegou a tomar umas pingas para criar coragem, matutava que assim fazendo, salvaria a honra da noiva! Na hora de falar, desistia.

Um dia antes do matrimônio, e pela madrugada como de costume, veio trazer o leite, e já na estrada deparou-se com populares, que cercavam o corpo de um dos negões, que fora encontrado morto com a cabeça partida.

Ao entrar na cidade, a noticia de que o segundo negão fora achado enforcado, embaixo da ponte. Continuou a entrega do leite, mas já a sua intuição o advertia do perigo.

As sete horas, a notícia do corpo do terceiro personagem, encontrado morto num matagal, com perfurações de arma branca.

A sua cabeça explodiu em pensamentos perturbadores, a noiva decerto, antes de casar, relatara o ocorrido ao futuro marido, tendo o mesmo, certamente, providenciado a execução dos participantes do infausto acontecimento, limpando assim o passado de sua futura esposa. Restava somente ele, Ecídio, a testemunha ocular, a quarta vítima, provavelmente.

Levou a carroça para a fazenda de um velho conhecido da família, relatou o fato, fez recomendação de passar a propriedade e o gado, assim como o cuidado dos pais, a um primo de sua confiança, apanhou o que pode de dinheiro emprestado com o compadre, e enveredou-se por caminhos outros, com destino a São Paulo.

Dez anos se passaram, quando ele viu na TV, o comercial da Embratel, anunciando a instalação de um orelhão, no lugarejo de sua origem; comprou as fichas, conseguiu a informação do numero, ligou para o compadre.

O mesmo o informou que o tenente mudara-se para o Recife, logo após o casamento, tendo a família da noiva também se mudado após vender todos os bens, e não mais tinham vínculos com o lugar, pois foram para a capital, a convite do Governador eleito, amigo pessoal do fazendeiro.

O passado morrera para sempre!

Finalmente pode voltar, após tanta solidão, os seus pais já haviam falecido, e o primo cuidara da propriedade, tendo aumentado o rebanho, os bens, comprado mais terras. Ecídio dera sorte na escolha do encarregado! Após o acerto com o primo sócio, casou-se e foi viver finalmente em paz.

A intuição o havia salvado, a quarta vítima escapara.

Todos os anos, naquela mesma data, rezava uma missa, pela sua salvação, e pela alma dos três negões, que por certo perambulavam pelos umbrais, em busca de luz e perdão.

Raphael Reys

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