EMILE
Uma folha esquecida sobre a mesa... Sobre ela um quê de insistência como a intimar ser preenchida. Era preciso que alguém, liberto da apatia, traçasse vida em seu espaço. Emile fitava-a, como quem se habilita.
A música de fundo mesclando-se com a fala do locutor do jornal vespertino. Alguém grita na rua. Tudo acontecendo simultaneamente. Também um cão latindo nervoso com uma criança que vinha em sua direção, se equilibrando sobre patins. O vento, em leve brisa, balouçando galhos, detrás da janela colonial.
Emile sentiu mais do que nunca, o desejo de registrar, no branco daquela folha, alguns fatos de seu passado. Ou, talvez, falar sobre alguém que não fosse ela própria. Sentia uma nostalgia tão intensa como se uma dor lhe oprimisse a alma.
Emile, outrora, pensava jamais ser capaz de escrever um livro, apesar de gostar e de ter-se distinguido na cadeira de literatura. Relutava contra fazê-lo, por não se achar suficientemente original. Apesar de naufragar-se em fantasias, duvidava de sua criatividade.
Hoje, com insistência, viera-lhe uma figura à mente, Augusto Alberto de Campos Belos, seu pai. Sim, ele seria um mote para uma bela crônica e um sinal aberto ao livre registro de suas emoções.
Augusto Alberto, de pomposo nome, como de resto, uma altiva imagem. Bigodes retorcidos, rosto altivo de quem acostumou a ser obedecido. Para Emile, tornara-se difícil falar daquele que conhecia bem. Seus traços tão marcantes e marcados deveriam vazar de seu cérebro.
A morte e o tempo desfiguravam a lembrança daquele homem. Ora o lembrava firme e seguro como um herói; ora, um fraco, preso a preconceitos e fiel as suas idéias extravagantes. Mas era seu pai e merecia respeito. Foram sucessivas as noites, em que não mais poderia contar com a mão paterna, mapeada de volumosas veias, como rios em alto relevo.
Este fora um momento tão rápido e fugidio de sua vida, mas fazia parte de sua rotina de mulher só. Ele nunca soubera ser carinhoso e, se o quisesse, denunciaria timidez e desajeito.
Emile pretendia escrever. Deixar plantada na folha tenra, um arremedo de eternidade, que perpetuasse as divagações de seus improváveis descendentes. Finalmente, desistiu. Deixar registrado para quem? Aqueles que não o conheceram, não o amaram, nem o detestaram, jamais identificariam a partir desses indícios.
Emile amassou a folha e atirou-a pela janela. Aquela criança retirou-se de manso, o cão dormitava ao sol poente, um pássaro cortou de leve o céu como quem retorna. No asfalto, negros vestígios de uma freada brusca, anterior aos fatos. Casais cerraram cortinas e se recolheram também.
De alguma maneira, Augusto Alberto de Campos Belos fitava-a. A mão gigantesca acenando. O braço forte que, num crescendo, enchia a casa. Olhos brilhantes pareciam refletir todos os segredos do mundo com seus romances e seus versos por escrever...
Dora Tavares