Terno escuro

Acordou. Passos lentos. Andou aquele dia ziguezagueando como um louco. Buscava apenas um motivo para o que teria acontecido há pouco tempo. Ela o abandonou. Resolveu partir esquecendo um bilhete amassado sobre a cama. Casamento destruído. Ainda podia sentir o rastro deixado pelo seu perfume, mesmo que ela já estivesse longe demais. Onde teria ido? Ninguém saberia informar. Sentou na calçada recordando do primeiro encontro. Inesquecível. Promessa de casamento. Amantes ao som de violino. Romantismo servido com champagne. Igreja cheia. Promessa de amor eterno, fidelidade infinita. Noiva imaculada. Véu estendido varrendo o chão do altar. Tímido sorriso alegre cor de púrpura. Respondeu sim. E você? Sim. Pode beijar a noiva. Aplausos. Sonho realizado. Lua-de-mel. Bariloche. Não queriam filhos. Dez anos de casados. Levantou-se da calçada. Entrou em casa. Abriu o guarda-roupa. Vestiu o mesmo terno escuro do casamento. Saiu. Caminhou com passos rápidos. Correu parecendo atrasado para um compromisso. Entrou em uma igreja. Ajoelhou-se. Pronunciou algumas palavras. Ergueu-se. Voltou para a rua. Fechou o terno. Estava frio. Começou a chover. Correu à estação de trem. Andou pelos trilhos. Chorou. Caiu. Deitou. Dormiu. A lua derramou a sua presença para protegê-lo por toda a noite. O calor dos primeiros raios solares o despertou de um sono profundo. Novo dia, mesma vida. Nada se fez novo. Levantou lembrando-se da esposa. Desejava apenas um “bom dia”. Conversou com a imagem dela guardada dentro de si. Caminhou procurando um destino. Ainda podia sentir as marcas do solo incômodo. Os grãos de areia roçavam com a sua pele triste, abandonada. Marcas da solidão. O corpo trêmulo tentava recuperar-se da noite fria, desgastante, exaustiva. Sentia fome, sentia sede. Aonde iria? Decidiu por uma direção: seguir a linha do trem! Talvez ela traria uma solução. Certamente chegaria a um bom lugar. Encontraria ajuda em alguma casa perdida no meio do nada. Objetivo: saciar a fome, saciar a sede. Ocupou o trilho com os pés cansados. Fez-se um maquinista. Seu corpo transformou-se em um comboio ferroviário. Seguiu em frente. Como um peregrino acumulou vontade, força. O sol anunciava a demora. Tudo se tornava diferente. O suor banhava a pele. Confundia-se com as lágrimas que brotavam dos olhos derrotados. Disputavam o espaço do rosto enrugado pelo tempo. O sapato velho pisava em falso o velho ferro do trilho enferrujado. Lambuzava-se da poeira que ascendia do chão. A boca seca, clamando por água, pronunciava o nome da esposa fugitiva. Cada passo o afastava do horizonte distante. Continuou. Creu que chegaria a um fim. Não hesitou. Desprendeu a gravata apertada. Esqueceu-se de si. Quase desapareceu no meio do nada. Perdeu-se no infinito, com passos lentos. Assustou-se, antes, com o barulho do trem. O terno escuro saltou dos trilhos despedindo-se de seu dono.

David Cid

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