O Roto e a Ética Divina
Quem o visse passar pela rua certamente o confundiria com um velho. Afinal, se considerarmos a velhice como um mero acúmulo de anos, cabelos brancos, ossos carcomidos, rugas e tremores diversos, sem dúvida ele não passava de mais um velho em meio a tantos. Inofensivo, trêmulo em isquemias, semi cego por águas turvas de gosmentas cataratas, ossos curvados em arco prestes a se partir; tudo isso dava a ele um vil disfarce de velhice. Mas não era velho; era roto.
Puído exibia na alma quase cem retalhos de vilania. Vis, dissimulados, escorregadios, ardilosos, medonhos, odientos e dados à mentira, ao roubo e ao engodo, os retalhos se pensavam eternos e resguardados da justiça.
Em seus quase cem anos de ignóbil cerzimento, não plantou árvores, não escreveu livros nem desenhou lembranças que valessem a pena lembrar. Por vilania tamanha nem o Diabo, nem Deus nem a Ossuda o quiseram levar. "Ética divina", os três alegaram voltando-lhe as costas para que na Terra apodrecesse como esterco maldito a alimentar frutos podres.
Marcia Frazão