ONDE O VENTO ENCOSTA O CISCO

“O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço pensante”.
(Pascal)

Ainda hei de repartir um fio de cabelo em quatro e pisotear os abismos.

Segurei o dente, sentada, num banco de madeira, no Parque de Santana. Pensei nos meus livros e como ganharia dinheiro com eles. O que havia ganho com minha obra não dava para encher nem a barriga de uma agulha.

Essa mesma cena eu havia vivido em 1978, quando conheci Dr. Pinheiro, meu dentista. Hoje em dia ele vive na pátria espiritual. Dr. Pinheiro me inspirou o conto “GRANOLA” – publicado em PULSO DE LAMÊ (1988 ). Senti um formigamento para retomar o conto e fazer outro bem parecido porque estava vivenciando uma situação igual à vivida em “Granola”. Procurei meu caderno com o manuscrito. Para surpresa minha a história iria se chamar “POLVO À ESPANHOLA” e eu o finalizei no dia 25 de agosto de 1986. Escrevi o final de lápis e desenhei cifrões. Foi publicado conforme meu desejo.

Agora estou aqui e percorro o cenário de minha história, Rua Buenos Aires, 268 – sobreloja. Impressionante mas saí do Parque com um gato grudado em minha saia. Um deambulante que viu:

- Dona, tem um gatinho pregado nas suas saias.

Falou assim mesmo, no plural. Rodei a saia na barriga e tirei o filhote. Levei-o de volta para o colo da mãe, escondida num arbusto. Uma mulher ociosa só pensa no que não presta. Fiquei imaginando que as unhas de um pobre gatinho podiam me infeccionar.

Fiz um cego cantar com uma moeda de um real e voltei a percorrer a Buenos Aires. Senti uma picada no coração. A rua era a mesma, o número idem mas o cenário de minha história fundia-se em decepção total para a memória. Procurei o terreno em frente que um dia fora uma imensa loja de plástico. Mas ali, agora, existiam três orelhões e uma praça de quatro metros quadrados, um local pícolo, com um poste no meio e uma lâmpada só.

Me lembro que Dr. Pinheiro, à época que publiquei o livro, foi ao lançamento, leu a história e disse-me que não entendeu patavina.

Preciso refletir. É hora de fazer alguma coisa por meus livros. Minha atrapalhação deve ser um bom sinal. Vem na hora uma epifania: tempos longínquos, quando mamãe recomendava que, se todos os filhos fossem sair, que o último deixasse a chave com o sapateiro vizinho. Em Teresina nunca soube o que era fazer cópia de chave. Lá, ninguém leva chave quando sai. Minha história já não parecia mais a mesma.

Eu precisava de um dentista, com urgência. Achar um que não me causasse pânico, tornara-se um problema em minha vida. O único que nunca me apavorou foi Dr. Pinheiro e este já estava no céu.

Parei em frente a uma placa na Luís de Camões. Subi uma escada estreitinha, cheia de propaganda. Respirei. “A sorte será lançada, seja o que Deus quiser.” Uma mocinha fez minha ficha - o dentista, peruano, novo e lindo, olhou-me e pediu que eu me sentasse – ou melhor, deitasse na cadeira. Tirei o dente da bolsa.

- É a segunda vez que cai. – Falei com a voz tremida, de medo.

Ele examinou, examinou e chamou o protético.

- O que você acha?

O protético respondeu que não servia mais.

Quedei os braços e perguntei quanto tempo levava para a feitura de um novo dente.

O dentista arqueou a sombrancelha para o lado do protético.

- Duas horas.

Enquanto o protético fabricava meu novo dente, começamos muitas conversas, muitos assuntos. Eu tinha todo o tempo do mundo. Ele me perguntou se eu conhecia alguém que quisesse roupas... muitas roupas femininas. Foi então que vi dezenas de bolsas no salão, bastante grande.

- Minha sogra que morreu. De infarto. Todas essas roupas vieram dos Estados Unidos.

- Posso olhar?

- Não só pode... e se quiser pegue pra você.

Escolhi umas dez calças compridas e dez blusas.

- Posso dar a indicação para um abrigo de senhoras pegar esse restante?

- É o melhor favor que você me faz.

Enquanto Tobias (era esse seu nome) lapidava o dente, observou que um filete de sangue escorria na parte detrás de minha coxa.

- Sangue cor de ferrugem.

- Foi o gato. Posso experimentar roupas de sua sogra, na toilete?

- Vista à vontade. Tem água oxigenada no banheiro, lave sua perna.

Depois da assepsia vesti uma calça azul e uma blusa amarela de mangas compridas, com uns botõezinhos marrons e uns bordados nas costas, de letras japonesas.

- Parece que foram feitas sob medida, para você. Nem se preocupa que seja roupa de quem morreu. Usa assim, sem lavar?

- Como dizia Fernando Pessoa, somos apenas um cadáver adiado... Ela possuía doença de pele?

- Não. Caiu no chão, pá, bum!

- Então? Que mal tem um morto?

- O dente está pronto. Vamos lá na cadeira do doutor.

Quando cheguei em casa, meu filho perguntou, que roupa é essa?

- Ganhei.

Na semana seguinte decidi voltar à Rua Buenos Aires, sem problemas de dente. Era sábado. Optei por esse dia porque o comércio fecha cedo, então eu poderia ver melhor o cenário de minha história. O sobrado continuava no mesmo lugar mas com cara de desativado. Andei mais um pouquinho e estava acontecendo uns ensaios de escolas de samba numa praça da Regente Feijó. Uma pessoa famosa, de cima de um palco improvisado, chamava, através de um microfone as passistas e mestres sala da escola de samba de Padre Miguel. Parei um pouco, muitos homens com um copo numa mão e uma garrafa de cerveja na outra, sambavam, mulheres também.

Andei... é dessa forma que vou dividir um fio de cabelo em quatro? Tudo parece um painel entrevisto em sonho. Fiquei num cantinho da calçada, bem onde o vento encosta o cisco.

Rosa Kapila
Edifício Imperador, 13-10-2007

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