Morto-Vivo
Sou um obstinado narrador das depravações. Se me perguntassem o que há de mais suntuoso no ser humano, diria: — A nudez de suas depravações. Para mim, nada mais lúdico e simbólico que a desmoralização de nossa castidade. O homem é o vigarista de sua própria obsessão. E numa ilusão visceral, assassina o verdadeiro caráter de suas fantasias. O homem morre. Deleita-lhe nos lábios ativos e insopitáveis o cheiro pálido de um drama inacabado.
Digo isso e reflito: O homem morre várias vezes num único dia. Todavia, o que piamente me impressiona nesta morte sem luto é a falta de coriza por parte de suas testemunhas. Chora a enamorada, o filho de colo, a viúva desolada e a falta de muco nasal escorrendo é vergonhoso. O cadáver de si mesmo permanece intacto, hirto, de uma empáfia modorrenta, como um monarca de puberdade coroada. Ao encará-lo a enamorada arruma seu corpete e sai lascando sandálias, o filho de colo com conjuntivite é a obrigação familiar dos dias de semana, a viúva de um morto-vivo desobedece à lei do silêncio despudorado das autópsias com sua lista de utensílios para cozinha. O homem de hoje, em vão, tenta morrer mais vezes do que o necessário. E por quê?
Dias atrás recorri à minha morte. Imaginava um caixão de madeira detalhada, com amplas alças douradas, pessoas lamentando: — “Tão jovem, mas bem que mereceu...”, crianças correndo ao redor e gritando, um senhor pedindo esmola, pasteizinhos e risólis sendo distribuídos, a coriza inestancável, vulcânica vertendo lentamente pelas narinas e um latido. Um latido misterioso ressonante... De repente surge, sem dono, um cachorro abanando a cauda avulsa e sentando-se perto da coroa de flores. Ergue a perna e com imediata intuição expele a impudência do destino abandonado. Em seguida todos olham, enxotam o pobre animal que recurva a solidão hereditária. Jogam-lhe alguns salgadinhos, fica ali, prostrado, observando os aspectos hostis e flagelado pelas pulgas, late mais uma vez. Ninguém lhe dá a mínima atenção. O morto continua a ser velado, uma senhora patusca sente que as varizes latejam e pede para sentar, começa o rito fúnebre e ninguém dá a mínima atenção.
Subitamente chego à conclusão de meus pensamentos. Somos um pouco suicidas de si mesmos. Quando tinha doze anos vi me pai se lambuzar de excrementos e todos ao olhá-lo davam grandes somas de importância. Alguém que ficara imóvel deveria ser digno de comiseração por parte de outro alguém. Meu pai gritava: — “Tragam fulana de tal, eu quero a fulana”, minha mãe ao atendê-lo expressava sua coriza e sua tristeza. Meu pai queria a amante, justamente a amante para limpá-lo, para dar-lhe banho e trocar a sonda. Minha mãe num canto se remoia. Pensava: — “Hoje me jogo de uma ponte!” E nunca o fez. Seu amor criara dentro de si um perdão incomensurável. Dir-se-ia que a canonização a acalentava de seu sofrimento. E toda a madrugada, durante nove meses, ela se levantava, em meio a gritos, e trocava meu pai na maior importância.
Hoje vejo meu irmão debruçado sobre o sofá, bêbado, dizendo que sente saudade, mas não dá a mínima importância. Todos os dias morre um pouco esperando que a morte lhe beije a face com a antártica frieza de uma ilusão. Mas mal sabe ele que em sua timidez a vida se estende cada dia e cada dia com mais dor, sem voltas... E os mortos hoje vivem na maior falta de importância como se o esquecimento viesse em boletos bancários, pagos somente em dias úteis, até o final do expediente.
Diego Ramires