PELOS SÉCULOS
Tocou, de leve, as mãos dela. Como se fossem cristal. E foi um sentimento límpido, claro, que sentiu tinir dentro do peito. Uma onda de calor e vida percorreu o corpo dele. O ar aqueceu-se. A sala clareou-se toda. Impressão? Verdade. Só podia ser. Amor. Só podia ser
E acariciou devagar as mãos e desejou o corpo, a alma, tudo, a vida inteira. Flutuou terras, navegou areias.
Mas aterrissou nuvens, atracou mares. E as mãos dela continuavam entre as suas. Ela o olhava entre tímida e atrevida. Tudo claro, tão, que ele já havia visto o próprio rosto refletido no espelho: cabelos grisalhos, rugas nos olhos.
As mãos dela — jovens e lisas — ainda entre as suas. Olhou as mãos. As suas. As dela. Olhou o rosto. O seu. O dela. Olhou o tempo. O seu. O dela.
E envergonhou-se. Adão ressuscitado diante da Eva que começava a nascer. Trinta anos os separava. Ou trinta séculos?
Abandonou-a ao vento e com suor e lágrimas seguiu sua trilha de solidão e entardecer.
Márcia Carrano
Do livro: Porção de Tintas, FUNALFA Edições, MG, 2003