Apetite famélico

1-2-3-4... Respirar e recomeçar. Os pesos pareciam estar pesando muito mais do que o que neles estava marcado. Para animar, o CD despejava todos os deci­béis suportáveis e mais um pouco. O quarto de em­pregada, transformado em miniacademia, por mo­tivo de contenção de gastos, que levara à eliminação da mensalidade da academia e à dispensa da empre­gada permanente, exalava o discreto charme do suor.
1-2-3-4... Faltavam mais cinco minutos, uma ver­dadeira eternidade para os braços ligeiramente dolo­ridos. Era o sofrimento imposto pelo desejo de desa­fiar o tempo, sem ter de esconder, mesmo no verão escaldante, o castigo de carregar nos braços um fardo de carnes molemente amarrotadas. Uma dieta draco­niana complementava a batalha que, diariamente, se desenrolava naquele quarto. Claro, com os indefectí­veis suplementos vitamínicos e outros fito-milagres.
Uma das paredes fora recoberta inteiramente com um espelho. Em um dos cantos o suporte para os diversos pesos, halteres e tornozeleiras coloridas recheadas de chumbo; no outro, um pequeno móvel, que na parte inferior era um almoxarifado em minia­tura, no qual ficavam colchonetes e, em cuja parte superior, encontrava-se o gerador de ruídos rítmicos, à base de CDs selecionados, e um combinado de tele­visão com videocassete, no qual desfilavam vencedo­ras provisórias da implacável batalha contra o tempo (e a gravidade). Duas pequenas caixas acústicas fixa­das à altura da cabeça, ladeando um pôster, algo ultrapassado, dos Stones, constituíam a decoração.
Num pequeno quadro de feltro, tão verde quanto a grama nas ilustrações de livros infantis, estava espe­tada uma planilha, com um programa de exercícios, elaborada por um amigo que ostentava o pomposo título de Personal trainer. Logo acima, para desen­cargo de consciência, ou para insinuar algum senti­mento outro que o interesse profissional, uma outra folha de papel com os dizeres óbvios, ou quase: “Cada caso é um caso. Você é apenas igual a si mesma. Quero ajudá-la, não matá-la, embora de vez em quando, não ache isso tão má idéia”. Uma cortina de juta impedia que o sol encontrasse uma frincha atra­vés da qual pudesse acariciar o carpete verde-escuro, ao mesmo tempo em que era um anteparo eficaz, a evitar que o olhar indiscreto de um vizinho pudesse encontrar algum conforto imerecido. Nos horários de malhação, a cortina ocultava aquele esforçado corpo feminino, sobre o qual, pequenas luminárias, acomo­dadas num forro de gesso, projetavam fachos de luz. Como sacerdotisa do culto ao corpo, oferecia a si mesma queimas de calorias no altar da vaidade, seguindo um ritual no qual a originalidade não ocu­pa­va lugar de destaque. Era uma seqüência repetitiva, quase um mantra corporal.
Depois da luta com os halteres, mais alguns exercí­cios de ginástica localizada, a prover um substituto muscular para uma intervenção à base de silicone, em determinadas partes do corpo. Um corpo ainda alvo de assobios e de murmúrios de aprovação, de sinceridade duvidosa, por serem provenientes dos profissionais da paquera. Ela queria se sentir bela e atraente, mas sem dever o favor à moderna Deusa dos Recheios. Talvez um dia, uma plástica. Talvez. Só para enquadrar melhor o sorriso.
E com esse sorriso, docilmente refletido pelo espe­lho, iniciou os exercícios de relaxamento.

 

Tempos difíceis, casamento desfeito, na véspera das chamadas bodas de leucoplasto, que talvez pudessem ter evitado a separação. O leucoplasto falhou e o vazio criado pela falta do companheiro estava sendo preenchido com raiva por figuras de passagem episódica e frustrante por sua vida.
Agarrou-se desesperadamente àquelas tábuas de salvação provisórias, até descobrir que, uma vez terminado o horário de expediente, havia mais coisas entre o céu e a terra do que supunha sua vã filosofia de ex-esposa modelo.
Aos poucos, operou-se uma sensível mudança. Claro que todas as mudanças são sensíveis, teria exclamado ela, se consultada a respeito. Não há mudança insensível, e sim observador distraído.
Manteve o hábito de voltar para casa, assim que se livrava dos compromissos profissionais. No começo atirava-se num sofá e entregava-se a infindáveis exercícios de autocomiseração. Revia cenas do passado, que desfilavam na sua memória debaixo da bandeira “Onde será que errei?”, que aos poucos mudou para “Será que errei?”, antes de se transformar em “Posso ter errado, e daí?”, e metamorfosear-se apoteoticamente em: “Errei coisíssima nenhuma”.
Já que, como todo e qualquer mortal, não tinha poder nenhum sobre o seu passado, decidiu soterrá-lo, em vez de conviver com incômodos fantasmas. Foi uma transformação cirúrgica, que lhe trouxe a insustentável leveza de ter a felicidade como meta e não como utopia, ao mesmo tempo que cada vez mais o passado passou a representar cada vez menos.
Inseriu, bravamente a rotina da ginástica, em substituição a compensações calóricas sempre à espreita dentro da geladeira, e fato mais importante, em vez de desabar na cama, passou a sair noite após noite. Não que isso eliminasse a horizontalidade da vida dela, apenas a tornou menos previsível. E mais errática. Em vez da prostração televisiva, uma espécie de formigamento nos novos glúteos a impelia para fora do apartamento.
Inicialmente, o deslumbramento causado pela liberdade ilimitada. A sua insegurança tomava banhos de champanha através do palavrório de galanteadores. Não demorou muito, para que as cantadas, desprovidas de imaginação, não surtissem efeito algum. Ela já conseguia separar a bobagem inconseqüente do sentimento real. Ao menos pensava ter alcançado esse grau de discernimento. Mas não era bem assim.
Prova disso foram os naufrágios sentimentais, com desdobramentos lacrimogêneos, bem como as resoluções heróicas de nunca mais beber daquela água. Aos poucos essas resoluções perderam espaço para opções mais sensatas ou ao menos mais pragmáticas, como, por exemplo, escolher com mais cuidado a água, sem deixar de estancar a sede.
Bem, sede ou fome, em pouco tempo constatou estar prestes a se tornar promíscua, a ponto de, com a experiência adquirida em poucos meses, ter competência para redigir um guia completo dos motéis da cidade.
Nela havia despertado o que, jocosamente, apelidara de apetite famélico, que a compelia, uma vez constatado o ingresso nos anos “enta”, a viver de uma forma que julgava intensa, dilapidando os saldos não utilizados de sua sensualidade. Convivia razoavelmente com essa faceta que, agora bem o sabia, sempre fizera parte dela. O seu combustível era a adoração, que pessoas escolhidas, e somente essas, haveriam de lhe dedicar.
Como Sartre, também chegara à conclusão de que a condição para a ação é a liberdade. E ser a favor da própria liberdade implicava admitir a dos outros. Mas aí cessavam as coincidências de pensamento, mesmo porque arrancar paralelepípedos nunca fora seu forte. Náusea, então, nem pensar.
Passada a fase aguda, restou inventariar as baixas. Se estava arrependida? Tanto quanto um motorista que, após um atropelamento, decide dar marcha-ré, passando de novo sobre a vítima. Mesmo que a vítima fosse ela mesma.
Entre outras coisas, no fim de semana, tinha marcado encontro com o ex-marido. Afinal, o leucoplasto poderia ter um efeito retardado. E talvez essa morosidade do efeito tivesse sido o que de melhor lhe acon­tecera, ao permitir-lhe ingressar num mundo novo, que, se não era admirável, ao menos merecia ser visto.
Pensando assim, terminou o alongamento e dirigiu-se para o chuveiro. O fim de semana e o encontro com o ex estavam longe ainda. Tinha um encontro em menos de uma hora.
Apetite famélico.

Alexandru Solomon

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