Amália

          Conheci-a durante o Carnaval. Era ainda quinta-feira e eu tinha recém chegado no Rio de Landau. Quisera ter o prazer de ver, pela primeira vez, a cidade e seu famoso Carnaval, cansado de tanto trabalhar, sem férias nem diversões.
          Naquela época, o tríptico kantiano da árvore, do livro e do filho era ainda um ideal de coroa, de pé-na-cova, a anos-luz de distância de minhas até mínimas expectativas de futuro. Claro, bem ou mal eu tinha já alcançado os três “emes” que deveriam satisfazer as principais aspirações dos jovens  italianos ex-68, todos já verdadeiros alienados como eu: de fato, eu tinha um “ m estiere” (emprego), tinha uma “ m acchina” — e que “máquina”! — e, mesmo não tendo uma " m oglie" (esposa) — que eu não fazia questão nenhuma de ter —, tinha, em contrapartida, um m ontão de m eninas com quem festejar o grande evento de encontrar-se todos os dias jovens, lindos e, principalmente... livres.
          Eu percorrera a via Dutra, vindo de São Paulo, junto com um amigo que havia conseguido um apartamento emprestado na Gávea e esperava também poder entrar de penetra no “Enrico C”, que naqueles dias de festa teria ficado atracado ao cais principal do grande porto. Em compensação, tivemos que levar junto a tia coroa e, a mais, uma colega dela para lhe ter companhia. Afinal, eram elas que haviam realizado um cruzeiro a Ushuaia, extremo sul do continente, durante o qual haviam estreitado laços de amizade com o baterista da orquestrinha de bordo, o pretexto para podermos entrar no fabuloso navio.
          Às quatro da tarde estávamos sentados a uma mesa do bar Pigalle de Copacabana, protegendo-nos por debaixo dos seus toldos, como melhor podíamos, da chuvarada que nos havia recepcionado logo após a descida da Serra do Mar. O Landau ficou estacionado lá mesmo, diante de nós.
          O samba já imperava em todos os cantos da cidade, com as várias bandas improvisadas que se acavalavam com seus bumbos, cuícas e pandeiros, empenhados em ondas insistentes do ritmo que anualmente domina os movimentos e as atividades (e até os pensamentos) das pessoas, no Brasil inteiro.
          O Pigalle também tinha sua pequena banda, montada na hora, por um punhado de músicos amadores, os quais animavam os fregueses a dançar, com seu irrefreável acompanhamento, insensíveis à chuva que continuava caindo espessa e vertical.
          Notei-a logo entre os jovens, que mostravam sua habilidade de bailarinos com a naturalidade dos verdadeiros profissionais. Aos poucos, os olhares de todos ao redor concentraram-se nela e até alguns dos entusiastas sambistas de última hora pararam para observá-la encantados.
          Eu também fiquei algum tempo olhando-a, e minhas pupilas ofuscadas deviam estar balançando no mesmo ritmo com que ondulavam seus quadris. Eu não passava de um jovem caipira e qualquer manifestação de exuberante vitalidade como aquela, levava-me facilmente ao êxtase.
    E, além do mais, ela era realmente uma graça. Pele clareada por uma sucessão secular de misturas de raças e logo escurecida por prolongadas exposições ao sol desmedido das praias cariocas. Olhos cinzas herdados de quem sabe quais nórdicos invasores, encaixados num rosto oval de traços regulares e serenos. Cabelos pretos, ondulados e volumosos, soltos até a cintura. Corpo escultural, sem arestas nem saliências extravagantes, além daquelas de que a natureza costuma dotar generosamente as filhas dos trópicos. Perfeita, em suma.
          E parecia incansável. Assim mesmo, concedia-se uma breve pausa entre uma seleção e outra, de vez em quando, para puxar uma conversa com seus amigos e para tomar um gole de cerveja da tulipa que alguém se encarregava de abastecer em continuação.
          Durante um desses intervalos, enquanto meus amigos haviam entrado no bar para escapar dos espirros persistentes da chuva, vi-a se levantando de repente e dirigindo-se em direção a mim, como se eu fosse um velho conhecido e quisesse vir me cumprimentar. Com jeito tranqüilo e descontraído, perguntou:
          — ‘Scuta ‘qui, você já fez “troca-troca”?
          — Como é?! — reagi com surpresa.
          — Estávamos falando do mais e do menos e o meu amigo aí insiste que todos os garotos, alguma vez, já fizeram troca-troca. — Eu continuava olhando-a atordoado. — Não me diga que você não sabe o que é isso... Sim, isso mesmo, um deixa o outro meter nele e depois ele mete no outro...
          — Fiquei sem palavras mesmo. Claro. Havia entendido. Mas, o que dera na cabeça daquela moça? E, além de tudo, quem a tinha visto mais gorda? E chegar desse jeito, de sopetão, abordando conversas tão delicadas... e tão fora de assunto, num momento como aquele... e na frente de estranhos...
          — Não, nunca me aconteceu.
          — ‘Cê ‘viu que eu tinha razão? — gritou em tom triunfal ao amigo que havia ficado tranqüilamente sentado lá à sua mesa —. Aqui tem um que nunca fez.
          Pegou-me pela mão e eu a segui como que hipnotizado. Apresentou-me aos seus amigos, enquanto os meus ficavam me observando curiosos por trás das janelas do bar.
          — Você é estrangeiro. O sotaque te trai. Você é argentino?
          — Não, agrigentino. —  Esta, quem não entendeu foi ela, mas serviu para me sacudir um pouco daquela fascinação. — Como você se chama? — tomei a iniciativa, escapando de ulteriores e fastidiosas explicações.
          — Amália. Eu nasci nas imediações.
          A sua tia morava na avenida Nossa Senhora de Copacabana, a uma quadra do ponto da avenida Atlântica, onde estávamos naquele momento, ao longo da praia mais famosa do mundo.
          — Este é meu local preferido. Aqui, entre um chope e outro, gosto de dançar, dançar, dançar... É a minha principal diversão: “sambar”. Entrego-me com prazer ao ritmo frenético do samba, não importa onde, entre (ou mesmo sobre) as mesas, na calçada, no asfalto e até na beira do mar. Quando danço, um sentimento de liberdade me invade e esqueço tudo... Bom, a cerveja ajuda bastante...

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          A chuva havia cessado de cair como por mágica e, em poucos minutos, muita gente deixava os momentâneos refúgios, rumo à imensa extensão de areia e sua clássica calçada, historiada com cubos claros e escuros de basalto, que reproduzem a infinita perseguição das ondas do mar.
          De repente, uma gritaria proveniente da avenida atraiu a atenção de todos. Eram gritos, risadas, buzinas que tocavam adoidadas... Numerosos carros desfilavam vagarosamente, ocupadas por um bando de travestis em roupas e atitudes espalhafatosas. Uma pick-up parou bem atrás do meu Landau e desceram quatro “alegres garotas”, trazendo ulteriores reforços ao nosso ambiente, já bastante “aquecido”.
          Uma delas foi sentar à mesa dum casal que se deliciava em observar o grande afã de tanta gente em busca de um momento de felicidade.
          — Mas que diabo está querendo de mim esta bichona? — pensou em voz alta o homem, enquanto tentava se esquivar das carícias que a drag-queen lhe impingia debaixo do nariz de sua companheira divertida. — Bedda matri santissima ! [1] — Exclamava comicamente, várias vezes. — Comu fazzu a scutularimilla di ‘ncoddu ? [2] . Era um paturnisi [3] , que exibia o siciliano mais rigoroso de que fosse capaz, pra ter a certeza de que ninguém teria entendido.
          As "moças" ostentaram ainda por algum tempo suas brincadeiras e caretas, sem deixar escapar ninguém, mas, após a fulmínea invasão, desapareceram, no meio do mesmo fragor de sua entrada em cena.
          Senti-me na obrigação de me apresentar ao conterrâneo e descobri um dos caras mais simpáticos que tivesse nunca encontrado por aquelas bandas. Ele morava em São Paulo.
          — O que você veio fazer no Rio?
          — Chiavare [4] !...  Oh... oh... Chiavare !... Oh, oh, oh, oh... — cantarolou maliciosamente com a música de “Volare” de Modugno. A acompanhante sorria sem entender.
          — E o que você faz em São Paulo ?
          — Chiavare ! Chiavare !... Estou brincando. Trabalho numa firma de tratores. Esta è a minha secretária e estamos tirando alguns dias de férias para ver nós também o Carnaval. Mas passamos mais tempo num quarto de hotel do que na rua. Este é o primeiro passeio a pé que estamos nos concedendo. Mas é a primeira e última vez que eu venho pro Rio. Que nojo! É a festa dos puppi , dos viados...

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          Amália ficou comigo todos aqueles dias de festa. Sabíamos que era somente um “amor de carnaval”, mas tínhamos decidido que teria sido “eterno enquanto tivesse durado”, como no famoso verso do Vinícius. Passamos horas agarrados como duas gavinhas. Adiante e atrás, em nosso Landau. De dia e de noite, sóbrios e ébrios, sempre famintos e sempre satisfeitos, em silêncio ou competindo pra quem tagarelasse mais. E ela me ensinando a gíria carioca, cheia de “erres” guturais e de “esses”... desssschlizantes. E eu ensinando pra ela os trava línguas e os jogos de palavras que aprendera quando criança ou aqueles que inventava na hora: «trinta e três tigres contra trinta e três tigrinhos»... «mamma mi ammalo, la malia di Amalia mi ammalia...».
          Os amigos, por conta deles, e nós dois em nosso éden embebido de sonhos sem futuro e de intermináveis gozos imediatos. O tempo exato para um banho de chuveiro, um lanchezinho, um copo de cerveja, uma troca de roupa, um espirro de perfume... e embora no Landau, pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo... ao longo da avenida Atlântica, o forte de Copacabana e todo o beira-mar de Ipanema, e, de volta, o Leme, o Pão de Açúcar, Botafogo, o aterro do Flamengo... e Santa Tereza, o Corcovado...
          E finalmente, praça Mauá arregalada sobre o porto. Havia virado o principal lugar de encontro dos meus amigos, que se disfarçavam com a maior desenvoltura por passageiros do luxuoso navio.
          Nós dois, ao invés disso, havíamos ficado persistentemente distantes, procurando lugares menos lotados, para viver nossa “love story ” em paz.
          Havíamos pensado, é verdade, de ir assistir o desfile das escolas de samba do domingo de carnaval na avenida Marquês de Sapucaí, mas o corriqueiro vaivém pela esplêndida topografia da metrópoli e nosso prazer incomensurável de ficarmos às sós quase nos fizeram perder o espetáculo. Mas há males que vêm pro bem e o atraso nos permitiu pegar a rabeira da última (e mais famosa) escola a desfilar, a Mangueira, imergindo-nos no som empolgante da bateria e deixando-nos arrastar pelo imenso rastro verde-rosa, figurantes privilegiados da apoteose que levava ao delírio os milhares de espectadores nas arquibancadas de cada lado da avenida. Amália dançou sem parar até o fim, enquanto eu procurava acompanhá-la como podia, caracolando como um tonto.
          O irrecusável convite para dar uma de penetras nós também, por ocasião do baile de gala da segunda-feira, porém, não o deixamos escapar. Chegando, esperamos bastante para poder deliciar-nos com a visão daquela cidade flutuante, antes de nos decidir a deixar o nosso aconchegante refúgio.
          O Enrico C, por sua vez, todo empavesado, devia estar olhando o carro de longe com ar de superioridade, mas, ao mesmo tempo, de inveja. Suspeitava, com certeza, que, naquele habitáculo, infinitamente menor que os tantos seus espaçosos ambientes, mas suficientemente confortável para um casal em amor, estivesse acontecendo justamente a celebração dum encontro, em franco contraste com a decadente pândega de seu salões apinhados.

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          Eu tinha ido buscá-la na porta de casa da tia, já pronto com o smoking das grandes ocasiões. Ela vestia um longo de cetim branco, com um decote de tirar o fôlego, destinado mais a evidenciar as partes ocultas do que as deixadas à vista. O penteado procurava conter a presença exuberante dos cabelos, acentuando, ao contrário, a sensualidade, graças à sua sinuosa maciez.
          Seu olhar, porém, não sei porquê, não tinha mais aquele fulgor de sã despreocupação que lhe era peculiar e jogava uma sombra de tristeza também sobre o esplendor do ambiente, da decoração, das roupas, da orquestra, do bufê, da sumptuosa iluminação... não, não era o cansaço, não. Estava triste mesmo, quase em lágrimas. Foi por isso, talvez, que preferimos abandonar os tangos e boleros cafonas do salão principal, para refugiar-nos na penumbra discreta, embora mais ruidosa, da boate.
          — O que você tem?
          — Nada... Não sei como contar pra você...
          — Mas o que... Tem outro no meio? Você sabe que eu não faço questão...
          Ela estava casada.
          Havia-se casado aos dezesseis anos. O marido tinha vinte, na época. Ela tinha-se apaixonado perdidamente por ele. Mas a sua família antiquada a tinha obrigado a se submeter ao exame de... virgindade. Que vergonha. Que humilhação. Que raiva...
          A semente da vingança brotou rápida em seu coração. Seduziu o médico que a examinara. Mas casou-se logo a seguir e ninguém nunca soube que o verdadeiro pai de seu filho não era o marido. Sim, era muito jovem e insegura. Ma não teria experimentado o menor remorso se não tivesse a plena consciência de que continuava amando-o de verdade. Afinal das contas, os seres humanos são mesmo polígamos por natureza e os homens nunca renunciariam a seu machismo...
          Dois meses atrás, o marido a tinha levado ao ginecologista para fazê-la esterilizar. Assim, como se fosse a coisa mais natural do mundo... Levaram junto a criança também, já de cinco anos de idade.
          — Doutor, gostaria que ligasse as trompas da minha esposa.
          — E porque deveria fazer isso? Ela ainda é muito jovem e vocês tiveram apenas um filho até agora.
          — Eu sei, mas eu não posso ter mais.
          — Você ficou estéril?
          — Não, mas logo vou morrer. Os médicos já amputaram uma das minhas pernas, mas não conseguiram bloquear este maldito câncer do osso.
          — E por que eu deveria esterilizar a tua mulher?
          — Não quero que ela tenha filhos com ninguém mais, quando eu estiver morto.
Não era natural também sentir raiva, revolta, vontade de se vingar, prazer em seduzir, enganar...? O que é o amor? Sexo? Estima? Fidelidade? Que sentido tinham palavras como essas?
          Agora ele estava agonizando e ela aí comigo, no meio da zorra. Ela quis que eu a levasse de volta pra ele. Fazia anos que queria lhe contar a verdade. Tinha esperado um momento como esse. A coisa mais difícil havia sido sempre a de encontrar a ocasião oportuna. Não existe nunca o momento adequado. Primeiro porque se trata de uma situação nova, depois porque as conseqüências são imprevisíveis. E, alem do mais, falar é sempre pior do que calar.
          — Mas por que você está querendo ser tão cruel?
          — Não é crueldade a minha. Cruel é a doença que o atormenta. Nem a morfina consegue mais acalmar suas dores.
          — Seria piedade então?
          — Absolutamente. Espero somente que o fel da decepção prevaleça sobre a dor do câncer. Ou que, pelo menos, consiga lhe abreviar as penas, ajudando-o a se render à morte. É apenas uma maneira, a última talvez, de lhe demostrar o meu amor.

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          O carnaval continuava imperando ao redor. Após havê-la deixado na frente da sua casa, permaneci sozinho, pensando longamente nela e no seu jovem marido em fim de vida.
          Os vidros fechados e o ar condicionado abafavam o retumbar insistente dos tambores, segurando-o a distância, com seu cicio respeitoso, do ambiente aconchegante do meu Landau.
          Pensei também em todos aqueles que teriam morrido durante aquela noite de folia e naqueles que, ao contrário, teriam nascido.

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[1] “Bela mãe santíssima” (exclamação siciliana de origem religiosa)

[2] “Como faço a tirá-la de cima de mim?”

[3] De Paternò, na Sicília.

[4] Transar

Giuseppe Buttera

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