FELIZ SÃO OS OUTROS
5 de abril
Gente que não tem filhos para cuidar e esposa para atazanar, faz o quê quando acaba o expediente? Eu chego em casa, tiro a roupa, deixo a camisa pendurada na poltrona da sala, ligo a televisão no noticiário preferido, tiro a calça, penduro na maçaneta do banheiro, lavo as mãos, esquento a sopa, tomo com pedaços de pão fresquinho (isso eu faço questão), volto à sala, assisto ao restante do jornal, me perco em distrações que perturbam o entendimento das notícias e adormeço.
Pessoas, como eu, devem ter uma rotina estabelecida para tapar o buraco que resta. Não sei por que diabos sempre falta alguma coisa. Que merda. Passo o dia ocupado com fatos relevantes à sociedade, editando, puxando a sardinha para o meu lado e chego em casa com a estranha sensação de não ter feito algo de útil ou de grande importância. Acho que vou me desvirtuar um pouco. Qual o sentido disso tudo? Eu quero ser um jeca.
12 de abril
Há três dias me encontro no meio do nada. Custo a acreditar que tive coragem de sair de casa com duas calças e três camisas. Peguei o primeiro ônibus para o meio do nada e parti. Cá estou. Não totalmente só, porque as pessoas do meio do nada são muito gentis. De uma gentileza ingênua. Não me pareceram desconfiar da minha presença repentina aqui, justo aqui. São hospitaleiros e agora já me encontro instalado, servido de bolo e café. Estou anestesiado. Não tenho muito a dizer por enquanto.
13 de abril
Em troca da hospedagem, meu host father me levou para cuidar da horta e das galinhas. Não agüento escrever, quem sabe amanhã...
24 de abril
O ser humano é extremamente adaptável. Já não sinto tanto o cansaço de um dia inteiro de trabalho braçal. A luz de candeeiro já não me cansa as vistas e eu já posso dizer que me sinto bem em estar aqui. Posso mesmo dizer que estou feliz.
O pai, a mãe e os filhos exercem tarefas distintas ao longo do dia. Todas juntas proporcionam o bem-estar da família inteira. O essencial não lhes falta. Não há luz elétrica, o que implica na falta de alguns eletrodomésticos, os quais eu achava não ser possível sobreviver sem. O posto telefônico mais próximo situa-se a 50 km . A mãe pariu seus dois filhos sozinha. O mais velho deve estar por volta dos 15 e o mais novo não muito distante disso. Quase não ouço a voz de ninguém. Todo dia é tão igual que não há o que conversar. Talvez tenham devaneios internos na hora de dormir, mas dividi-los com os outros parece bobagem. É assim hoje. Foi assim sempre.
27 de abril
Quantos anos desperdicei! Tantos dias sem dormir, pensando numa maneira de trocar o carro, mudar para um bairro mais moderno, parecer mais feliz aos amigos. E tudo o que precisava, o que eu realmente necessitava estava aqui. Aperto no peito, embrulho no estômago são sintomas de um passado que parece distante. É engraçado como o mês passado aparenta ser ano passado após alguns dias de ocupação intensa no meio do nada. Por mais incrível que isso possa parecer, dormir sobre uma colcha fina, no chão desnivelado encerado de vermelho, tem me proporcionado ótimas noites de sono. Não que a minha vida na cidade não fosse cansativa também, mas me causava tanta ansiedade, que pregar o olho era das tarefas mais árduas. A certeza de paz no dia seguinte me é um bom sonífero. E as estrelas? Quem na cidade pode vê-las em tamanha quantidade como as vejo aqui? Isso é tudo o que eu queria. Isso é tudo o que eu poderia querer.
30 de abril
Sabe o que é mais impressionante? Em todos esses dias, não ouvi uma queixa a respeito de coisa alguma. Óbvio! Como sentir falta daquilo que não se conhece? O único passível de queixas seria eu. Mas do que eu poderia reclamar? Há quanto tempo eu não via as estrelas? Há quanto tempo não sentia a liberdade correndo nas veias? Livrei-me de uma vida que me aprisionava. Pressões e exigências que deveria cumprir. Nem sabia se a minha vontade estava livre de vícios, só sabia que eu precisava ter, eu precisava fazer. Minhas conquistas pareciam mais importantes aos outros que a mim mesmo. Minhas viagens eram mais divertidas e especiais para aqueles que apreciavam minhas fotografias. Não que essas coisas todas fossem ruins, mas não me completavam a ponto de viver em pleno êxtase, como alguns imaginavam, ou como eu gostaria que fosse.
Após algumas tentativas de transpor as barreiras do hábito de não se falar, percebi que o ser humano é, basicamente, igual. Ele é influenciado pela cultura, pelo ambiente, pelas companhias, mas a essência é única. A busca pela sobrevivência pode ser descrita em cenários diferentes, com acessórios dos mais diversos, acompanhado de vinho e foie gras ou simplesmente de bolo e leite quente. Mas o fim é o mesmo. As angústias, a ansiedade para que essa sobrevivência se dê da forma mais tranqüila e confortável estão presentes em todos. Alguns podem expressar o que sentem através de livros, poemas, canções. Outros, apenas deitam, sentem um aperto no estômago e dormem.
12 de maio
A luz chegou por aqui e resolvi fazer um agrado à nova família. Não, eu não me sinto de casa. Isso é só forma de dizer, que fique claro.
Comprei uma televisão de catorze polegadas. Eu tinha que carregá-la por cinqüenta quilômetros e isso me impediu de comprar uma maior. Também não havia necessidade. Pra quem nunca tinha visto nem uma preto-e-branco, essa estava de bom grado.
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Dá para imaginar a euforia, o espanto, a curiosidade de todos ou preciso descrevê-los minuciosamente?
25 de maio
Eu sei dos interesses da Igreja em catequizar o Novo Mundo, mas será que seus soldados tinham consciência do que estavam fazendo ou foram manipulados a acreditar naquela balela? Padre Anchieta agiu com dolo ou culpa?
Pra que merda comprei essa televisão? Eu já tinha conquistado o Novo Mundo. Não precisava desbravar a mata atrás de riquezas, aliás, fugia delas. Agora não há mais diferenças aqui. Vivo de modo parecido ao da cidade de onde parti. Trabalhar mais para comprar mais. Queixas agora são recorrentes, principalmente dos filhos, que querem tudo o que vêem. O meio do nada já não parece bom o suficiente pra se viver.
Aquilo que era apenas uma ferida oculta, um ligeiro incômodo antes de dormir, era agora uma dor recorrente. Ansiedade diária de mudar de vida, porque felizes são os outros. Se a preocupação antes era com a chegada da chuva, agora era em como sair dessa vida de meio do nada e viver em algum lugar. Aquilo é que era vida.
Agora eu me pergunto, o que faço de mim? Onde mais poderia encontrar a felicidade? Será que ainda havia, nesse mundo grande de meu Deus, um lugarzinho qualquer não catequizado? Poderia eu ainda nutrir esperanças de viver fora da panela de pressão? E se houvesse, eu teria a capacidade de viver sem misturar os dois mundos? Excluir de vez toda a minha experiência, meu conforto e minhas próprias exigências?
Melhor voltar pra casa.
Viviane Costa