QUANDO MAMÃE SE TRANSFORMAR

Na minha casa, ninguém se entende. Desde os tempos do útero, e já de muito antes - de quando nem ao menos estávamos programados, mas que guardamos em nosso mais remoto inconsciente - que engendramos uma família de mísero estigma e odiosa subserviência aos pés do mundo, lá fora, esmagador.

A minha mãe, temo, teria assassinado minha irmã com veneno no fundo do copo, no auge da sua carreira religiosa, porque Maria - era o nome da minha irmã - só cantava hinos da sua autoria, e Mamãe tinha interesse em vender barato o pouco que era nosso, e que, em casa, todos deixassem entrar fácil o que vinha de fora, em forma de esmolas disfarçadas do vizinho rico, Seu Mac Donald, que morava uma quadra acima da nossa vila.

Depois que Maria morreu, eu debandei de vez porque, entre nós, era ela a única pessoa que entendia das coisas por si mesma, com pureza e sem distorções, sem nunca ter freqüentado escola; a única, além de mim, que tinha vergonha na cara. Os meus outros irmãos eram todos espertinhos, mais ou menos sem moral, ladrões e cúmplices entre si. Embora minha mãe nunca tivesse propriamente roubado, deixou-os render-se ao dinheiro e adotar todo tipo de tacanhice para consegui-lo.

Quando Maria morreu ( não sei bem se morreu, sua voz ainda me corta ) , houve um lance muito sutil, com que estou certo de não me ter enganado: ninguém chorou de verdade, lamentou, convicto, ou procurou investigar a causa, como sempre se faz. Ou, se o fizeram - que fizeram - concluíram que o pozinho no fundo do copo de Maria era talco ( talco, imaginem...talco). Nunca vou poder me esquecer das caras dos meus irmãos mais velhos e menores à beira do caixão ( da família toda, que era enorme ) refletindo o estado de frieza que a minha mãe lhes incutira todas as horas dos seus dias contra a desditada Maria, e que naquele momento tentavam disfarçar com patética encenação. Se não me engano, até vi o lábio da Velha a tremer, como querendo sorrir, quando o caixão saiu, e, outra vez, no cemitério, quando baixou à tumba.

E muito embora ela ainda conserve, passados vários anos, retrato da menina em lugar de destaque, na parede da sala, não esquecendo as flores nas datas certas e até usando hinos de Maria no coral da igreja, quando ela toca em seu nome eu percebo um rilhar de dentes por trás da boca carnuda e cusparenta. E se ainda menciona Maria, não é, não me engano, por saudade ou por outro qualquer atributo humano, mas por questões diplomáticas com a vizinhança e o pessoal da paróquia.

Porque Maria, quisesse ou não Mamãe, conquistou seu espaço por todo o bairro, entre outros membros de outras famílias mais evoluídas. Deixou de fora o que nerecia estar de fora e foi ao encontro do que quis, alastrando-se mesmo a despeito do ódio da Velha e da indiferença da maioria dos seus. Sua única e maior fraqueza, ou coragem suprema, terá sido deixar-se matar. Bem que podia ter-se disfarçado até hoje, como eu,o bastante para presenciar o dia em que Mamãe vai se transformar, ou morrer, também, como morre, aos poucos, de podre.

Ademar Ribeiro

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