Crase

Quando chegaram à praça, a babá estirou o lençol sobre a relva e apoiou a bolsa no pé de uma árvore frondosa. O bebê espremeu os olhos ao sentir a frescura da sombra em que se instalaram. Logo, retirou-o da cesta macia e perfumada e sentou-o no lençol branco.

Ao longe, uma senhora cosia sapatinhos azuis e a babá fixou-se naquela arte feita com tanto zelo e concentração. Girou seu olhar aos casais que caminhavam com carrinhos de bebê e conversavam animadamente sob a claridade que lhes protegia. Sem entender sua alma, lágrimas vieram aos olhos e respirou profundamente o ar puro e renovador daquela manhã de setembro. Perguntava a si mesma sobre sua condição de mulher e ser humano, atingindo, no âmago de suas incertezas, mesmo sem saber, teses e teorias que conseguiria comprovar a partir do que via ali.

Um cão correu a sua frente e a distraiu com suas orelhas arredias e a alegria que só existe nas criaturas alheias ao mundo humano. Invejou-o porque nunca vivenciara um momento sequer de contentamento e sentiu vontade de sê-lo naquele instante. Questionou-se sobre a possibilidade de transfigurar-se, ser outro, ser diferente, ter um senhor, um alguém que – como o dono do cão – a esperasse de braços abertos tão sinceramente e longe das amarras do mundo-homem. Riu-se.

Imaginou-se cão. Seguiu o animal com o olhar, despejando no corpo os movimentos aos que o bichano se lançava. Movia-se como a lagarta em metamorfose sob a língua quente e úmida do sol. O sol, o sol... Parou por um instante com a dança e pôs-se a encarar aquela luz clara e poderosa que a aniquilava só para depois ficar com a visão turva, coisa de seu tempo pueril. Era o seu momento.

As pernas estavam estendidas para frente e seus joelhos levemente dobrados, seus pés não se preocupavam com a elegância e nem obedeciam aos seus comandos, eram pés de criança, de uma criança solta, porém tímida: daquelas que em uma varanda de um casarão antigo, reparte os cabelos ao meio, entrelaça-os em duas belas tranças, compondo um vestido plissado e com rendas; sapatinhos azuis para combinar com as fitas de seu traje e penteado. Idade... Idade é uma casca que endurece cada vez mais para proteger a frágil criança adormecida em nós.

É por isso! Agora entendia por que seus pais se revelavam crianças. Era a idade: a casca havia rachado e a infância saiu correndo livre e despreocupada. E ela? Agora, era a adulta, a responsável, a exemplar. Dizia-se não! Para que sair da coxia? Sentia-se humilhada e escravizada diante dessa situação. Mas, onde está o colo? Onde chorar? Nem sabia que o colo correu junto com a infância de seus pais buscando outros colos. Seria o dela?

Viu-se diminuída de tamanho e sentiu uma presença que a alentava, a ninava, a amava incondicionalmente. Quem seria? Deus não poderia ser, estava muito longe, não daria tempo de descer de lá, do céu. A não ser que se estendera do céu à terra um imenso escorregador em que Ele descesse com os olhos fechados, expressão de surpresa e com frio na barriga. Viesse Ele e todas as almas do mundo brincando, gozando a vida. Que vida?

Não, não era Deus. Eram eles, todos os seus fantasmas, todos os seus personagens. Foi um descuido, um grande descuido e eles saíram, fugiram. Agora, com uma cantiga de roda, todos eles a envolviam e se envolviam naquele ambiente de pureza e contentamento. Manteve-se sentada ouvindo e sentindo as vozes e as presenças dos que um dia contribuíram com, ao menos, uma alinhavada para construí-la: obra inacabada.

Teve receio de que pudessem, malvadamente, puxar um de seus fios e, em alguns minutos, voltasse a ser simplesmente linha, sem vida e sem história. Medo tolo: as linhas do Homem são fios de aço que ninguém consegue desmanchar – verdadeiro trabalho de Saci.

O odor que a cercava era a essência de todos os perfumes e abriu os olhos na tentativa inútil de encontrá-lo. Só o que viu foi a praça, com seus bancos, flores, árvores e pessoas alegres. Olhou em todas as direções, mas eles, os seus personagens, se foram. Sentiu-se pesada, cansada e aturdida. Lembrou-se: o bebê!

Olhou para o cesto, para o lençol, para as cercanias e nada. Pôs-se de pé, levou a mão ao rosto, um frio corria-lhe a espinha: eis o mundo, criança! Retirou os sapatos, veio em minha direção e nada verbalizou, mas o pânico estampado em sua face, lembrou-me o dos hereges à época da crucificação. E, em resposta a sua pergunta, tampouco verbalizei a resposta, apenas apontei para o meu lado direito e, de forma animalesca, ela partiu na direção.

Não se sabe o que passava em sua cabeça antes de chegar ao local, via-se, apenas, seu corpo trêmulo – depositário das sensações. Correu deixando para trás o lençol, o cesto, sua bolsa, sapatos e tudo o que vivenciara. Nada era mais importante. Alguns passos e viu pequenos arbustos com flores coloridas e casulos recém construídos por lagartas. E, em meio a eles, o bebê. Alívio e consternação. Agachou-se diante dele chorando lágrimas de perdão.

Compreendendo-a muito, o bebê apontou para uma das pequenas árvores e sorriu um sorriso cândido, iluminado e sábio, por sua vez, ela mirou os braços daquela criatura, seus dedos rechonchudos e pequenos, achando o alvo de sua admiração: uma asa de borboleta azul projetava-se do casulo no feixe luminoso que o sol insistentemente invadia. Ela caiu sentada, abraçou-o em meio ao pranto, enquanto ele ria a gargalhada gostosa dos bebês. Restou a mim, no banco ao lado, registrar com meus pincéis e tela em mãos esse momento de todos nós.

Verônica Falcão

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