O ÔNIBUS E A GRAVATA
Seis e quinze da tarde de um abafado novembro paulistano. Tinha sorte de poucas pessoas estarem no ônibus. Havia lugar até para sentar. Lá fora o trânsito era infernal, uma tempestade ameaçava cair. O final do dia seria uma obra artística do próprio demônio. Trânsito. Chuva. Inundação.
Mariko estava desolada, seu relacionamento acabou. O trabalho não ia bem, seu Chefe um completo idiota. Como ela mesma dizia “um espoliador de mentes babão”. Não admitia as idéias dos outros também não podia ver um rabo de saia. Naquele fatídico dia, Mariko vestia uma minissaia combinando com suas sandálias de saltos. Ressaltavam suas grossas pernas de nissei.
“Nunca mais iria com esse modelito”!
Ele não parava de olhar. Mostrava a língua para ela como se a lambesse. Fez uma proposta maldita. Se ela fosse com ele hoje a um motel, seria promovida. Mariko pensou imediatamente em assédio sexual, mas é muito fácil falar quando acontece com as outras.
Asco, nojo, queria se lavar. Estava enfurecida. Poderia matá-lo?
Pode. Quer.
Lembrou da noite anterior. Brigou definitivamente com seu namorado. Ele era interessante quando não sentia ciúmes ou quando ia bem nas provas, o que não acontecia há um bom tempo. Ontem ele a magoou falando do relógio que seu pai tinha dado.
A gota d'água.
Foi expulso do apartamento. Estava sozinha agora. Sentiu ao mesmo tempo um alívio e um pesar, talvez estivesse acostumada a ele. Seus carinhos iriam fazer falta mais tarde, mas como dizia seu pai:
“homem é que nem ônibus perdeu um tem outro. De vez em quando demora, ainda assim é melhor do que agüentar suas chatices”.
Aceitou a atual condição. Observava as pessoas dentro do ônibus. O motorista olhava para o trânsito como se não houvesse ninguém lá fora. Sua alma voava longe estava na praia grande em Santos. A única praia que freqüentava. Uma velha insistia em mostrar a carteirinha para ele, queria descer do ônibus sem pagar. Não deu a menor consideração, ele simplesmente abriu a porta.
O cobrador estava sonolento tinha dificuldade de manter os olhos abertos. Todos no ônibus estavam presentes apenas corporeamente. Seus pensamentos abundavam qualquer outro lugar do universo, menos onde jaziam suas carnes.
Fantasiavam sobre a loteria e como iam gastar aquele dinheiro se ganhassem. Para aquele humilde servente de pedreiro ainda teria de pegar mais duas conduções. Imaginava uma deliciosa janta que o aguardava. Um adolescente sonhava com as pernas da mulher feia que passava na calçada, vai ver ela não era tão feia assim.
Em seus devaneios, Mariko achava que o ônibus uma poderosa droga alucinógena. Essa droga era potencializada quando estava num congestionamento na sexta feira de tarde. Na condição de usuários desta droga, haviam os viciados, os abstêmios e os reincidentes. Gente que insistia em ficar dentro do ônibus mesmo quando seu ponto estava próximo.
Seis e meia da tarde ia chegar atrasada ao treino de kendô, o que mais gostava de fazer, nem ligava para a separação do namorado ou para o babaca de seu Chefe. O kendô era mais importante. Onde deixava às mágoas, os entreveros, as dores. Mas, estava atrasada. O ônibus insistia em andar lentamente. Impossível ir mais rápido, o trânsito não permitia. Talvez se fosse a pé chegaria lá atrasada, mas não perderia o treino. Levantou do banco puxou a cordinha para descer, o motorista nem olhou.
“Seu motorista abra a porta, por favor".
Demoraram alguns longos segundos para ele assimilar a informação. Na pista do lado um carro importado cortava outros carros, fazendo as mais perigosas manobras na contramão. Num relance Mariko reconhece o motorista infrator.
Era seu Chefe!
Mais a frente ele consegue engarrafar o trânsito de tal maneira que ninguém mais se mexia. Os ônibus ficavram tão colados uns nos outros que se podia andar em cima deles formando uma passarela. Buzinas, xingamentos e para piorar a chuva torrencial desaba. Era como se tudo tivesse acontecido porque o imbecil do seu Chefe resolveu cortar caminho. Ele era o estopim do caos agora infernal.
Lá estava ele todo sorridente para a garota sentada a seu lado. Mostrava todos os seus dotes de macho, ele com suas correntes de ouro e sua gravata Armani, seu carro importado e qualquer imbecil que cruzasse seu caminho haveria de sofrer as conseqüências de sua tão estimada machesa. Mariko olhava a cena. Estava inconformada. Voltou ao lugar onde estava sentada, tirou sua roupa de ginástica da mochila. Era uma camisa de malha preta, calças igualmente preta de lycra e tênis preto. Amarrou seus longos cabelos num coque segurado por duas varetas. Trocou-se ali no ônibus, ninguém percebeu, estavam todos com a mente embotada pela embriagues da droga. Mariko parecia uma ninja vestida daquele jeito. A chuva tinha diminuído, os carros se exprimiam tanto que era impossível andar por entre eles. Segurou no batente da porta deu um impulso e de repente estava no teto do ônibus. Foi andando na passarela formada pelos ônibus. Para passar de um ônibus a outro era preciso só esticar um pouco mais as pernas. No último ônibus viu seu chefe engarrafando o transito, estava logo abaixo dela. Deu um salto e caiu em cima do teto, amassando o carro.
O susto que o Chefe tomou foi enorme, achou que uma árvore tivesse caído em cima dele. A garota ao seu lado não parava de gritar. Ela era uma ingênua menina do nordeste. Veio para São Paulo na clássica ilusão de melhorar de vida. Começou como faxineira no prédio. Era uma menina bonita, logo foi chamada para ser recepcionista, claro que depois de sair várias vezes com o Chefe. Afinal ele até era um homem gentil, pagava o jantar no motel e a deixava no metrô mais próximo de sua casa. Às vezes ela se sentia mal pelo que fazia. Somente mulheres esquerdas tinham este tipo de atividade. Mas de vez em quando as necessidades apertavam. Já enfrentou muita coisa ruim para se dar ao luxo desses preconceitos. Até se sentia gente quando ia a um motel com seu chefe, estava experimentando sabores da sociedade de alto nível. A vida de gente famosa que freqüenta motel, que come comida boa, veste roupas de shopping, perfumes, bijuterias. Ela até tinha alguns sapatos de salto altos. Aproveitou para mudar seu nome para Josy, antes era conhecida como Maria das Dores dos Santos Alcântara. Josy era um nome mais parecido com as artistas de novela.
O Chefe demorou um pouco para se recobrar. Mariko deu outro salto e caiu no capô. Ele a olhou não entendeu nada.
“O que a Mariko estava fazendo no capô do carro”?
Viu a japonesa rir e o dedo médio dela levantado. Sua raiva foi uma convulsão. Como um vulcão que expele lava, aquele homem gordo expelia impropérios a doce japonesa que insistia em mostrar o dedo médio. Ele saiu do carro em fúria, Mariko percebeu o perigo. Escalou rapidamente o ônibus da frente.
Aquele homem a xingava de todas as formas que conhecia. De cima do ônibus ela se sentia segura espicaçava o Chefe, mostrava o dedo.
“Babaca! Cretino! Seu frouxo”!
A raiva dele se transformou em força, esqueceu que estava acima do peso, da barriga saliente exibida com orgulho. Esqueceu da chuva, do fino sapato social. Conseguiu escalar o ônibus. Saiu correndo atrás de Mariko, estava impressionada com a repentina agilidade do Chefe. A perseguição começou, mesmo escorregando ele continuava atrás dela. Nem ligou para o perigo de escorregar e quebrar a espinha.
Ela foi mais ágil estava um ônibus na frente dele. Mariko corria por cima dos ônibus facilmente a agilidade de uma gata. O Chefe escorregava, pisava na barra da calça molhada. A raiva o fazia levantar e continuar a perseguição. Seus olhos explodiam naquele momento seu objetivo era matar a maldita japonesa e iria fazê-lo.
Mariko mantinha o Chefe à distância, mas de repente os ônibus acabaram. Aquele era o último! Um farol mal sincronizado era responsável pelo congestionamento e agora estava aberto.
O Chefe deu um salto inacreditável para seu tamanho levou um tombo, mas conseguiu segurar numa das escotilhas do teto. O ônibus começou a andar, virou a esquina e ganhou velocidade com os dois em cima. Mariko estava encurralada seu Chefe estava babando de satisfação.
“Vou quebrar seu lindo pescocinho. Japonesa do Caralho”!
Pescoço que muito cobiçou.
Ela se agachou segurando uma escotilha de teto. Estava sem saída. Uma guinada brusca fez o Chefe escorregar para o lado do ônibus. Num relance conseguiu agarrar o calcanhar de Mariko que segurou com todas as suas forças a janela da escotilha. O ônibus não parava. Ele estava insano se apoiou na quina do teto segurou a perna dela. Mariko chutava a cara dele, ele não desistia.
Estava assustada. Tinha de se livrar dele se não ela ia cair junto.
Gritou de desespero!
O motorista se assuntou e num súbito ato freou.
Ela se agarrou onde pode. A freada foi mais forte. Foi jogada no meio da rua. Conseguiu cair em pé amortecendo a queda com vários rolamentos.
Tinha alguns ralados, mas estava inteira. Olhou ao redor procurando seu chefe viu uma cena de terror.
A gravata enroscou numa fenda no teto, estava pendurado. Seus olhos esbugalhados mostravam a violência da cena, se enforcou com uma falsa gravata “Armani”. Sentiu um horror imediato.
Era seu Chefe quem havia morrido. Ela estava inteira. Deu de ombros
A chuva voltou a cair forte, ainda estava em tempo de chegar ao seu treino de kendô. Foi atravessar a rua, farois altos e buzinas. Um repentino baque.
Estes sons foram se tornando mais altos até se transformarem em buzinas sentiu uma forte brecada e um dor no seu pescoço que estava sustentando sua cabeça caída. Ouviu alguns xingamentos.
Estava no ônibus tinha sonhado tudo aquilo. Mais uma vez a poderosa droga foi mais forte que ela. Outra forte brecada e o motorista não parava de xingar o carro que lhe cortou a passagem e agora, interrompeu o trânsito. Marico deu uma olhadela pela janela e reconheceu o carro importado. Era seu Chefe. Talvez tal droga tenha lhe permitido uma premonição. Trocou de roupa, com um chute abriu a porta do ônibus e subiu no teto...