CÉLULA

Um mano fugiu da prisão. Corre pelos becos a mensagem. Choca-se contra as paredes malcuidadas da COHAB e se pendura nos gatos de luz da vila mais próxima, do pessoalzinho que nos inveja. Claro. Vejo seus olhinhos brilhando na escuridão por detrás dos arbustos, os tipinhos suados tentam se camuflar por entre nós mas conhecemos a nossa gente. Claro. Os vileiros tentam se infiltrar, roubam os moradores do bairro, assaltam velhinhas nas paradas de ônibus, contaminam a estética da periferia. Eles, os do esgoto a céu aberto, não passam de suburbanos do centro periférico. Então ontem um dos manos da vila fugiu do presídio. Primeiro contatou a progenitora, eu soube; depois, os bródis, eu também soube. Sei quase tudo, o que não representa nenhuma vantagem, porém é que às vezes não se tem escolha e se acaba ouvindo o que não quer. Sei, por exemplo, que um piá de vinte e dois anos, pai de uma guriazinha de seis meses, policial militar, gente boa que ajuda a mãe numa sorveteria pé-de-chinelo, que junta cestas básicas no natal e distribui na vila, que doa parte do salário de fome pro asilo de cegos idosos do bairro, sei que esse cara, que eu cumprimento todos os dias e já batemos altos papos malhando os políticos, o rapaz de olhos castanhos com riscos esverdeados, que me faz menos infeliz ao espiar-lhe a beleza sem o compromisso de ser flagrada no vício em observá-lo, bem, depois da saída do filho da puta da prisão ele morrerá com três projéteis nas costas e dois na cabeça.

Numa tarde eu voltava da merda onde trabalhava. Um dos empreguinhos imbecis que escolhia a dedo, e vi a faixa de tecido exposta sobre as portas fechadas da sorveteria. CONVIDAMOS A COMUNIDADE PARA O ENTERRO DO NOSSO QUERIDO W. Convite à comunidade? Bom, se eu morresse com certeza a comunidade nem ficaria sabendo por que aqui os importantes se dividem em dois lados, policiais e bandidos. E eu só era uma suburbana dura de pobre que paquerava um policial e dormia com um bandido. E foi o último que disse, após várias latas de cervejas, que o “carinha” do sorvete, o puto do tira que havia assassinado um mano de uma outra gangue, ia levar a dele. E a família também.

A ação transcorreu durante o dia. Ninguém se camuflava mais. E o guri, sem farda, sem arma, sem esperar pelo golpe, sem enxergar a fuça do assassino: morreu. Cinco disparos, o barulho da moto, a cena congelada. Imagino que nessa história herói é aquele que pula pra debaixo duma mesa. E mais herói ainda é aquele que trabalha longe dali. Como eu.

Com a morte do jovem porco, a família ficou exposta aos meliantes. Por isso os colegas do rapaz se revezavam na proteção diária dos que ficaram; da mulher que ficou com os braços cheios de um bebê sem pai, da tia que ficou com os braços cheios de uma irmã que perdeu o filho, parte do útero. Vinte e quatro horas, policiais à porta do estabelecimento à espreita, vigilantes, desconfiados, consumidos por uma raiva muda, endurecidos pelo luto, normalmente injusto.

A mãe do policial morto é parecida com a mãe do meu amante, proprietário de uma loja de carros usados. Um desmanche de automóveis roubados, dir-se-ia. As duas são religiosas e freqüentam as missas dominicais. Elas até se conhecem e conversam por minutos inteiros quando a minha sogra resolve fazer uma torta de sorvete misturada com massa de pão-de-ló e passa na sorveteria a fim de comprar o recheio gelado. Falam sobre a violência, a falta de futuro, os muros da cidade; mas, também, falam sobre as flores coloridas da primavera, o céu sem nuvem e a falta que faz um líder revolucionário como Jesus, aqui, na periferia da mui leal e valorosa. E ainda falam da vilã da novela das oito, da plástica da cantora pop e das promoções do supermercado da esquina. Utilizam-se das mesmas palavras, usufruem do mesmo vocabulário e, às vezes quando uma vai abrir a boca, talvez o olhar, talvez um ricto labial revele o que ela irá dizer, e a outra já se antecipa e responde. Ambas riem. Suspiram. Olham para os lados, pras pessoas nas ruas, pra sujeira no asfalto, para as fumaças nas carrocinhas de churrasco. E tudo é perfeito. Elas sabem que sim. Hoje uma delas veste preto por dentro e tem a alma cortada em pedaços gemendo dentro das veias.

E a mãe do bandido que dorme comigo, desliza a mão enrugada pela feição embrutecida do filho e eu sei que nesse instante ela não reza. Não adianta rezar. Ela pede para que eu saia com a voz mais doce do mundo. Ele não me contém porque sabe que sou dessas mulheres que não sou contida por mãos alheias. Desço as escadas do prédio que conheço muito bem. Lembro que não tenho mais bolacha salgada e nem café e a noite é triste para aqueles que dormem sem comer então.

Encontro a rua escura. O beco e seus nós e truncamentos inexatos e incômodos. Fecho os botões do casaco e finjo que não percebo que a polícia acaba de invadir o prédio.

Janice Diniz

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