Fantasmas de 2007
“Haverá arqueólogos no futuro?”
Em 2307, depois de um grande abalo sísmico que praticamente acabou com o que sobrara de São Paulo, o solo abriu-se em fendas e vestígios de uma anterior civilização apareceram. Depois do choque inicial, do susto desmedido, assentada a poeira, Osoiruc ousou aventurar-se pelos rasgões da terra. Escavando ruínas, em busca de algo que lhe possibilitasse obter alimento e água no mercado negro, encontrou um pequeno baú de aço, em formato de cápsula, que abriu a golpes de marreta. Dentro dele, imagens coloridas, brilhantes, de coisas que não conhecia: fotos de rios, céu, mar, árvores, plantas, pássaros, gado, bichos, animais domésticos, cenas do Pantanal, da Amazônia, mata Atlântica, do cerrado, da caatinga, dos pampas. Fotos das grandes cidades brasileiras. De seres semelhantes a ele: sérios, sorridentes, sofridos, tristes, homens e mulheres de todas as idades, crianças nos mais diversos momentos de vida. Fotos das figuras mais importantes da época, do povo, de grupos folclóricos. Osoiruc encantou-se com a figura de seres sorridentes, com os braços para cima, outros com bandeiras nas mãos. Pareciam dançar. Havia objetos estranhos cheios de folhas (livros) abarcando todo o conhecimento adquirido pela sociedade brasileira em todas as áreas. Documentos em invólucros transparentes, especiais para conservá-los. Tudo, enfim, que em 2007, se imaginou ser importante para alguém do futuro.
Remexeu o baú; folheou os livros (sua bisavó falara-lhe deles), muitos dos quais desfizeram-se em suas mãos grossas, calejadas; encontrou coisas brilhantes, redondas (cedês? devedês?) que não conhecia. De que lhe serviriam? Quantos goles de água valeriam? Olhou, olhou, cheirou-os, apalpou-os e chegou-os perto do rosto para vê-los melhor. Havia caracteres escritos neles, parecidos com os dos livros. Apertou os olhos para entender o que era aquilo. O sol de cinqüenta graus centígrados e a superfície brilhante impediram-no. Ficou de costas para o sol e prestou a máxima atenção, fazendo seus ociosos neurônios funcionarem. Descobriu neles, vestígios de antiga língua falada e escrita na região. Isso ele sabia: a linguagem transformara-se, adaptando-se às dificuldades crescentes de comunicação, e pouco sobrara dela. Não praticavam o diálogo; viviam em grupos de poucas pessoas, afastados uns dos outros, e sua fala era monossilábica. O sol causticante fê-lo arrastar o baú para uma fenda da montanha (serra da Cantareira?). Ficou dias e dias olhando, remexendo, avaliando tudo aquilo. Eram objetos que jamais saberia de sua serventia. Sopesou-os à luz de suas necessidades de sobrevivência: quanto valeriam em água, pó, alimentos para sua fome? Não sabia.
Voltou-se para a decifração dos documentos preservados: conseguiu entender uma ou outra palavra. Havia datações em todo o material. A não ser a data, nada que lhe fizesse sentido. Osoiruc, descendente de nobre linhagem paulistana, autodidata e, sem saber, filósofo, olhou para fora da caverna; anoitecia e o céu vermelhejava. Pensou: ”quem sou eu? Por que estou aqui, nesta terra seca, revolvida, vivendo em caverna, comendo insetos e roedores?” Voltou-se para os papéis brilhantes e coloridos. Olhou-os um por um e suspirou: quanta coisa bonita! Tudo lhe parecia agradável, mesmo as fotos mais deprimentes e realistas do cotidiano infernal de 2007. A realidade de Osoiruc não tinha cor, nem brilho; era cinzenta, escaldante e solitária. Depois de muito tempo, sua mente reuniu fragmentos do que ouvira em toda sua vida. Juntando com o que tinha em mãos entendeu que aquilo mostrava a mesma terra em que vivia agora. Chorou: antes, tudo; agora, nada.Lamentou-se num quase grunhido. Como seria feliz se tivesse vivido naquela data.
Em 2007 , apesar de todas as mazelas, da sordidez, da corrupção, do crime organizado, os brasileiros eram felizes e não sabiam. E, por não saberem, arrasaram seu presente e entregaram aos seus descendentes um futuro terrível. De nada servira a Osoiruc essas notícias surgidas do nada: fantasmas de uma época em que cada um achou-se no direito de destruir tudo ao seu redor; de matar, de roubar, de acumular riquezas e lixo, de corromper, de queimar florestas, de traficar madeira e drogas, de poluir rios e mares, de não pensar no outro, de não pensar no futuro.Assim como foram insensatos a ponto de deixarem como herança uma pátria exaurida, degradada, sem vegetação e pouca água, em 2307 completaram sua obra perversa. Osoiruc nunca mais foi o mesmo; ficou a cada dia mais triste, mais acabrunhado: há trezentos anos acabara-se a esperança.
Neiva Pavesi