MALA
Sexta-feira. Onze de agosto. Sete da manhã. O tempo, já quente, dava sinais de que o dia não seria fácil. Menos ainda para José. Casado. Pai de três filhos. Endividado face os gastos familiares. Funcionário da limpeza de um colégio estadual, em Madureira. O soldo mensal, pouco mais de dois salários mínimos, ‘não dava nem pro cheiro'. Hoje ‘cairá' o xeque de mil reais. Não há a menor possibilidade de haver fundos. O pagamento está longe e, embora perseguisse o macaco durante a semana, o ‘bicho não deu'. Preocupado, seguia cabisbaixo até o ponto de ônibus. Só com seus pensamentos, nem se dá conta do que o cerca. Poucas lojas estavam abertas. Apenas pequenos bares e padarias já mostram serviço. José quebra a esquina do lote tomado pelo capim. A vontade de mijar vem repentina. Mecanicamente, embrenha-se no matagal do terreno. Sem olhar, põe a ‘coisa' pra fora e se alivia. O som do mijo, porém, não é normal. Parece cair sobre algo plástico. Não dando muita atenção ao fato, olha e vê parte de uma mala preta. A urina é cortada de imediato. Ele pega a maleta. Não é pesada, para quem está acostumado ao serviço braçal. Sua casa está perto. Ele faz o trajeto de volta. Abre a porta. A mulher levou as crianças à escola. De lá irá à residência onde trabalha, em São Cristóvão. José põe a maleta sobre a mesa. É do tipo executivo. Couro fino. Semi-nova. José força o trinco, que cede facilmente. Seus olhos faíscam frente centenas de ‘verdinhas' de cem reais. Deve haver milhares. Com a rapidez com que cortou o mijo, o medo se abate sobre esse homem simples: o que fazer com aquilo? Por ironia, no rádio da casa ao lado, Paulo Diniz entoava Drummond: ‘...e agora José?...'.
A grana diante de seus olhos o impedia de coordenar as idéias. Num movimento brusco, fechou a maleta. Respirou fundo. Tentou relaxar e se sentou. A princípio, veio à mente o momento do achado e, depois, os questionamentos: quem deixaria cair algo assim, sem se dar conta? Teria sido colocada ali para esconder ato ilegal? Seria parte de roubo? Isso era perigoso? Melhor levar a maleta até a delegacia. Afinal, o dinheiro não era seu! Talvez o dono estivesse desesperado. Quem sabe teria perdido quando fazia um pagamento importante. Isso! Melhor seria levar à Polícia.
Não! Talvez fosse mais sensato ficar com o dinheiro. ‘Achado não é roubado'. Ele não havia tomado de ninguém. Estava ali, no meio do mato. Quem sabe, até foi Deus que, condoído, conduziu-o até a mala? Vai ver era coisa de traficante! E se alguém viu? Pensou bem. Não lembrou ter visto ‘viva-alma' por perto. Bem possível que, ao tentar devolver, acabasse se complicando com a Polícia ou ‘indo pra vala'. Mas, e à mulher... o que diria? Melhor nem contar. Droga! – pensou – não se lembrava a última vez que mentiu para a esposa. Além disso, ela tem reclamado bastante por não possuírem máquina de lavar.
Não! Isso não importa. Não poderia ficar com o dinheiro. E sua consciência? Talvez fosse de alguma firma. Quem sabe perdido por algum ‘motoboy'. Desses que sempre transitam naquelas bandas. Pobres miseráveis que passam o dia arriscando a vida, sob sol e chuva, por mísero salário, como ele.
Quanto mais pensava, mais se desesperava. O certo seria devolver – refletia. E teria de ser antes de Maria voltar, ou ela diria o de sempre, chamando-o de ‘frouxo sem ambição': ‘– Por isso – alegaria – que me acabo no tanque todo dia!'. Para ela, José não pensava em crescer, nem num futuro melhor para os meninos.
Com raiva, pegou um maço de notas e contou. Cem notas de cem. Dez mil reais. Havia cem maços. Ao todo, um milhão. Naquela região, só poderia ser dinheiro de roubo ou tráfico. Pois que fosse. José não mais seria humilhado por ninguém. O futuro dos filhos estaria garantido. Ele não morreria limpando banheiro de colégio. Teria afinal um carro. Arrumaria os dentes da esposa. Ao fim do ano, viajariam com as crianças. E Deus? Deus, que a tudo vê e tudo sabe! Pois bem! Então que Deus soubesse: José agora é um homem rico! Poderá depositar mais que centavos na sacola da igreja. Quanto ao suposto dono, esse que se virasse pra resolver seus problemas. Afinal, ninguém havia se preocupado com o cheque que entraria na conta. Foi aí que percebeu: as horas haviam passado. Suas reflexões consumiram parte da manhã. Não fora trabalhar. Teria o dia descontado. ‘Foda-se! – pensou – Agora sou rico!'. Mas precisava ir ao banco. Fica feio rico ter nome sujo. Abriu a maleta novamente. Separou dez notas de cem. Olhou-as contra a luz. Procurou as marcas d´água. Conferiu os números, com medo que fossem iguais ou em série. Não eram! Fechou a maleta. Mas onde guardar? As crianças são um inferno: mexem em tudo. E se Maria achasse? Será que fugiria com o dinheiro e o deixaria na merda? Talvez fosse hora de trocar de mulher. Começar vida nova. Em Miami? Não! Lembrou que mal falava o Português. Pudera, sequer concluíra o primário.
Onde fora criado, havia poucas escolas. Andava léguas em chão batido, de casa até o colégio mais próximo. Tivera infância de privações. Vida difícil. Ainda rapaz, por noites sonhara ir para a cidade grande, ter bom emprego e casa bonita. Lembrou das palavras da mãe, na manhã em que partiu em busca do sonho: ‘– Nunca se esqueça José,... se fores um homem honesto, terás, como tem teu pai, noites de sono tranqüilo!'. ‘Droga! – pensou – Por que tinha que lembrar da mãe logo agora?'. Isso provocava remorsos.
Moralista religiosa convicta, D. Antônia – morta há décadas – exercia influência sobre ele. Para agravar, ao levantar a cabeça deparou com a foto da falecida, sobre a cômoda. Parecia olhá-lo sisuda, como se o repreendesse. José baqueou. Perdeu a coragem. Desistiu de ser rico. Queria devolver o dinheiro. Mas a quem? Decidiu que iria lançar de volta ao matagal onde o encontrara. Meio-dia. Rua cheia. Saiu com a mala apertada sob o sovaco.
José correu até o terreno. Assustou-se ao ver a Polícia no local. Chegou em tempo de ver o cadáver ser levado pelo Rabecão. Aguçou os ouvidos. Rumores indicavam que o ‘de cujus' levara quatro tiros. ‘Coisa grande'. Roubo de carro-forte. Depressa José se afastou. Lançou a mala no primeiro ‘container' de lixo que viu e foi trabalhar.
Mal pisou o pátio da escola e o encarregado já gritava com ele, jurando descontar do salário a jornada não cumprida. Ao contrário da manhã, a tarde moveu-se como lesma. Ao fim do expediente correu pra casa. Maria, já de cara ‘amarrada', perguntou logo se havia ‘coberto' o cheque. José meteu a mão no bolso. As notas estavam lá. Disse orgulhoso: ‘– Ainda não! Deixa comigo. Amanhã resolvo!'. Largou-a resmungando e foi se deitar. Não jantou, nem tomou banho.
Acordou às vinte horas, com as batidas na porta. Apavorada, Maria mandou ver quem era. ‘Nessas horas – pensou – é mais difícil ser homem'. Abriu a porta. Era a Polícia. José foi preso em flagrante delito. Suas digitais estavam na pasta de couro vazia, encontra pelos garis. A maleta continha também as digitais do ‘presunto' do terreno baldio. As dez notas, ainda no bolso, não deixavam dúvidas aos homens da Civil. Algemado, José lançou vista para dentro da casa. A esposa o olhava com desprezo. A foto da mãe, no alto da cômoda, parecia mais zangada que pela manhã. O rádio do vizinho – viciado em MPB –, agora tocava ‘Tangos e Tragédias': “...todo menino que se prende pela mão de sua mãe, diz que vai longe, mas não passa do portão...”.
André L. Soares e Rita Costa