ONÍRICO
Vou indo por uma estrada de terra, batida em alguns pontos, com marcas de carroças e de patas, terra vermelha solta, em outros. Estou seminu. Somente uma tanga de plumas. Minhas alpercatas de fibra vegetal, gastas, quase rompidas. Minha musculatura forte, recobre-se de suor brilhante. Estranho a falta de pêlos. Ao passar a mão na testa para enxugar o suor, sinto outras plumas ali presas. Arranco o cordão que contorna o crânio e constato: penas de arara – duas vermelhas, uma azul. Gosto dessas cores. Ouço um galope e olho na direção do ruído. Lá longe. Aproximando-se. Percebo que se trata de uma mulher pelo volume dos seios. E ela me causa terror. Resolvo fugir e corro. Mas não saio do lugar. O galope se aproxima e fico ofegante, o medo percorre minhas veias, uma cobra de gelo desliza por minha coluna. A poeira levantada pelos cascos me faz tossir, tossir incontrolavelmente. Curvo-me até ficar de joelhos, costas dobradas, rosto quase no chão. O cavalo pára indócil ao meu lado. Assim que sossega, crio ânimo nem sei como, e olho para cima. A amazona me fita desdenhosa, tira o chapéu, solta os longos cabelos, negros, negros. O meu espanto é maior – o rosto é meu. Sinto que a vista me foge. Tudo desaparece.
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Todas as noites, ou quase, o mesmo sonho. O analista diz que é um sonho recorrente, cujo significado devo buscar nas longas sessões a que me submeto quinzenalmente; que deve ser um símbolo de algo que me incomoda, alguma coisa pela qual eu fui parar ali, naquele sofá, falando, falando, falando. Olho para as almofadas em vários tons de lilás e penetro um limbo, no embalo de minha própria voz. Parece que estou ali, a falar, por muito tempo. Mas se tivesse ultrapassado o horário ele teria avisado. Pago por hora, e ele tem muitos clientes.
Todo o dinheiro que possa ganhar, com uma facilidade atordoante, não me dá a tranqüilidade. Na infância paupérrima, sempre desejando coisas, às vezes essenciais, sem poder tê-las por falta de recursos; minha mãe sempre exausta, lavando e passando roupas alheias, o rosto vincado, a face precocemente enrugada, a fome . Até hoje, trinta anos depois, consigo visualizar as paredes úmidas, as goteiras nos dias de chuva, o abafamento nos dias de verão, o eterno estar-no-mundo, sem conforto nem beleza. Mas uma saúde física milagrosa me habita. Com ela jogo e ganho, jogo e ganho – troféus e mais troféus, dinheiro, muito dinheiro. Fama. Poder. Menos o que tanto desejo: paz e tranqüilidade. Até no sono o índio e o cavalo me perseguem.
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O galope e eu tentando correr. Olho para o horizonte distante e agora vejo um vulto enfumaçado. Não distingo seus contornos, e o galope atrás de mim continua. Só que agora consigo sair do lugar. Minhas pernas se flexionam, elásticas e rápidas em passos longos , que imediatamente se transformam em uma corrida veloz em direção ao vulto do horizonte. É uma árvore, galhos longos e folhosos balançam-se como num aceno para mim, e eu vou.
Cada vez mais perto. A dor é pungente ao tocá-la. Mergulho em seu caule, que se abre magicamente, sou seiva, sou cerne, sou folhas, sou flores, sou frutos.
Agora tenho paz e, alegremente, saúdo o amanhecer, os primeiros raios de sol a enxugar o orvalho de minha verde copa.
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Sônia Adarias Soares Bruno