O Fenômeno

              Acomodei-me na minha poltrona preferida, frente à TV, para ver o jornal das oito, quando...
              — Boa-noite, Pedro Paulo. Chegou mais tarde hoje.
              — Quem está falando? Onde...
              — Aqui. Aqui em cima. Estou há dois dias estudando as suas maneiras e atitudes. O senhor não me viu até agora porque não tem o hábito de olhar para cima. – Imediatamente ergui a vista, claro. Utilizando as mãos e os joelhos ela estava grudada no teto, mais parecendo uma mosca gigante. Os cabelos longos, castanho-claros, soltos, de pé, atraídos pela gravidade. E cabelos femininos, sabemos, são fetiches que excitam os sonhos.
              — É alguma brincadeira? A belezinha é de circo? Como entrou aqui?
              — Vou fazer de conta que não ouvi. Quero morar sozinha também, num lugar silencioso assim, como este. Portanto, peço-lhe a fineza de mudar-se para algum lugar logo após o jornal. Vou ficar, neste local aconchegante, a partir de hoje.
Levantei-me nervoso, já falando alto: — Só que não pretendo dividir este espaço com ninguém. Se já trouxe alguma coisa pode pegar e sumir.
              — Que maneira feia de se expressar. Já disse: também quero ficar sozinha. Assim, repito, o senhor vai pegar seus pertences e sair imediatamente, senão...
              — Senão, o quê? Tá querendo me intimidar? Quem manda aqui sou eu.
              — Intimidar para quê? Só de falar, o senhor já morre de medo. Mesmo assim uma pequena demonstração deverá ser convincente.
Assim falando ela soltou-se do teto e, flutuando no ar, foi descendo devagarzinho até os seus delicados pezinhos tocarem o meu tapete e, ali, ato contínuo, esticou os braços, com as palmas das mãos à frente, voltadas para mim, fechou-as e abriu-as rapidamente várias vezes e as movimentou subindo-as. Acompanhei o gesto, alçando-me lentamente, até grudar as costas no forro.
              — Agora um pequeno giro para reconhecimento da área. — Novamente os membros superiores foram mudando e o meu corpo, suspenso, seguia cada movimento. A seguir deslizei, ainda grudado na parte superior, até a parede da esquerda, e desci ao piso, de cabeça para baixo, e continuei, levitando próximo ao chão, até a parede oposta e escalei-a sem dificuldades. Eu parecia um animal provido de ventosas, enquanto a janela se abria sozinha, misteriosamente. Sempre no ar, preso por fios invisíveis, passei pela abertura e fiquei parado, como uma ave, do lado de fora. O horror esfriou-me a espinha quando vi veículos e pessoas doze andares abaixo.
              Zombeteira, ela continuou — Gostaria de descer, subir um pouco mais, ou dar umas cambalhotas?
              — Não. Por favor, não. Leve-me de volta. Farei o que mandar.
              — Ótimo. Sabia que era uma pessoa sensata.
              De pé na sala, ela atendeu minha súplica. Mantendo-me na horizontal, trouxe-me de volta, calmamente, até estacionar-me um pouco acima da sua cabeça. Aí voltei à verticalidade e desci suavemente, com um suspiro de alívio. Estávamos frente a frente agora. Apesar das estranhas e perigosas brincadeiras notei que ela era uma mulher lindíssima. O desconhecido quase sempre nos encanta, pensei.
              — Obrigado. Vou recolher tudo e sair.
              — Não precisa correr. Pode assistir ao jornal. Depois, sem pressa, faça as malas.
              — Enquanto eu estiver fora quem vai pagar o condomínio, água, luz, gás, telefone...
              — Não usamos telefone. Somos telepáticos. O senhor continuará responsável por esses pormenores desagradáveis. Penso ficar três ou quatro meses por aqui. Ou menos se terminarmos a tempo nossa pesquisa.
              — Que pesquisa? E, atenção, terminarmos é plural. Quantos mais estão por aí? Quem são vocês? De onde vieram?
              — Quantas perguntas. Nada temos a esconder. Queremos apenas acabar logo nossos trabalhos. Pode vir quando quiser mas não nos deixe nervosos. Eu e os meus amigos somos calmos, não gostamos de excitação.
              — Quem são eles?
              — Outra vez? Adianto-lhe apenas que todos encontraram ótimos lugares para trabalhar à vontade.
              — Posso trazer o pessoal? Eles gostariam de conhecê-la.
              — Não. Eles tirariam a nossa privacidade.
              — Permita-me filmá-la ou fotografá-la, ou não acreditarão quando eu falar sobre esta experiência.
              — Não o autorizei a falar sobre nós. Cuidado, senhor Pedro Paulo. Posso deixá-lo mudo, cego, ou paralisado, pelo tempo que me aprouver. A propósito, mudei de idéia. Desligue já a televisão e saia. Estamos atrasados com a coleta de dados.
              Obedeci correndo. Encontrei um hotelzinho próximo dali. Proibido de falar sobre a estranha criatura fui, aos poucos, entrando em depressão. Os dias passavam e eu já não fazia a barba, comecei a beber, não conseguia concentrar-me nos projetos, tornei-se irascível, agressivo e, dois meses depois, perdi o emprego. Felizmente tinha algumas aplicações e isto me salvou. Os juros eram suficientes se levasse uma vida simples, sem gastos extras. Mas a esquizofrenia aumentava dia a dia.
              Sabedor de todos esses problemas e em nome de nossa amizade um grande amigo, de muitos anos, veio visitar-me.
              — Como vai, Pedro Paulo?
              — Quem é?
              — Quem é? Não me conhece mais? Sou o Jonas.
              — Ah, oi, Jonas. Há quanto tempo... Tudo bem?
              — Otimamente. Mas sua aparência... credo! Emagreceu. A barba, antes um pequeno cavanhaque, bem cuidado, agora está comprida, intensa, pontiaguda. As roupas amassadas, os sapatos rotos e sem brilho.
              — Estou acabado.
              — Bobagem. Ponha a cabeça pra funcionar e recomece a vida.
              — Que jeito? Nem os filhos vêm me visitar.
              — Não é culpa deles. Estão dizendo que você se tornou agressivo, chato.
              — Mentira.
              — Tá bem. E essa história aí de que tomaram conta do apartamento e te puseram pra fora? É verdade?
              — Se é. Vá, verifique, e comprove.
              — É o que pretendo fazer. Vamos juntos e me apresente.
              — Não. Se ela souber que falei a respeito estarei morto. – Sendo minha intenção tirá-lo dali e esclarecer de vez o mistério, concordei.
              — Sem dúvida. Eu entro, e falo com ela. Espere do lado externo. – E fomos ao seu antigo ninho, agora habitado por não sei quem.
              Com a cópia da chave abri a porta, achei o local bem arrumado, mas totalmente vazio. Nem assim ele quis entrar. Permaneceu no corredor olhando nervoso para cima. Quando examinava a cozinha e os quartos, ouvi vozes. Corri à entrada e o encontrei falando com uma mulher muito elegante.
              — Jonas, esta é a jovem que mora aí agora.
              — Prazer... Meu parceiro diz que a senhora o expulsou e tomou posse da casa dele.
              — E o senhor acreditou?
              — Tem certeza de que é a mesma garota, Pedro Paulo?
              — Certamente. Ela está mentindo.
              — Detesto mentiras. Vim visitar uma amiga que mora neste mesmo andar e sou chamada de mentirosa. Com licença. – E foi saindo...
              Pedro Paulo, nervoso, falou. — Apresente-me à sua amiga, então.
              Tentei ajudá-lo. — Por favor faça-lhe a vontade. Deixe-o conhecer a sua colega.
              — Está bem. Venham. Sejam bem-vindos ao nosso chá da tarde. – E seguimos os três em direção aos fundos do prédio. Notei um detalhe curioso enquanto caminhávamos. Falei várias vezes com a estranha personagem mas não obtive resposta. A rapariga caminhava absorta, desligada, fixando o verde-claro das paredes.
              À frente do número 343 parou, tocou a campainha e aguardamos. Minutos depois uma garota extremamente bonita apareceu. Ambas se abraçaram, se beijaram, sorridentes, e nos convidaram a entrar. O chá, com bolo de nozes, enfeitava a mesinha de centro. Sentamo-nos e fomos servidos na hora. Notei que as louças e talheres, para quatro pessoas, já se encontravam sobre o móvel.
              — Quem são os cavalheiros, Heloisa?
              — Na realidade não os conheço. Este moço disse ao outro que tomei conta da moradia dele e que, em decorrência, mora provisoriamente em um hotelzinho perto daqui.
              — Rindo bastante a outra respondeu: — É Inacreditável. Que absurdo!
              Levantei-me em seguida peguei o meu amigo pelo braço.
              — Vamos embora, Pedro Paulo.
              — De jeito nenhum. É uma farsa. Por telepatia uma avisou a outra desse encontro. Prepararam o chá, o bolo... Ambas estão mentindo.
Heloisa nervosa, retrucou: — É a segunda vez que o senhor me chama de mentirosa e eu nunca o vi antes. — e encarando-me — Por favor, convide este senhor a retirar-se.
              — Sim. Claro. Agora mesmo. Venha comigo, Pedro Paulo.
              — Vou porque sou uma pessoa educada. Mas podem esperar que volto e provo que falo a verdade. Tenho certeza de que a senhorita é uma delas, também.
              — Sem agressões podem vir quando quiserem.
              Saímos. No elevador ele apertou o 14º andar. Quando ia perguntar o porquê me pediu silêncio. Chegamos à residência do zelador, ele bateu e o seu Expedito veio nos atender.
              — Pois não, senhores. Espere, o senhor não é o Pedro Paulo?
              — Eu mesmo, Expedito. Por favor, me diga: quem mora ou morava no 343?
              — O Mauro. Aquele jogador de futebol. Ele foi visitar os pais no interior. Só que já faz dois meses e pouco e ainda não voltou. Todas as contas estão atrasadas.
              — E quem reside lá, agora?
              — Está vazio, afirmou.
              Aí percebi a sagacidade desse excelente arquiteto. Ótima Idéia. As duas não eram conhecidas por ele.
              — Senhor Expedito — falei — tem uma moça no 343 e outra no meu apartamento.
              — Não senhor. Temos um sistema de segurança perfeito. É impossível entrar sem autorização.
              — Venha ver, então, — e arrastei-o pelo braço.
              Descemos os dois andares, chegamos ao 343, apertamos a campainha e esperamos. Nada. Tocamos novamente. Insistimos. Não houve resposta.
              — Eu não disse? Neste prédio só entram pessoas conhecidas dos proprietários.
              Utilizando sua chave mestra, entramos. Encontrei móveis e utensílios em ordem. Nada de vestígios do chá, bolo... Procuramos em todos os cantos, principalmente nas partes superiores de todos os cômodos e nada encontramos.
              — Não há vivente aqui — falou.
              Pedro Paulo foi rápido:
              — Obrigado seu Expedito. O senhor tem razão. — E repetiu, brincalhão:
              — Não há vivente aqui.
              Em seguida arrastou-me até o elevador. Descemos e fomos ao restaurante em frente tomar um café e trocar idéias. Olhei rapidamente pra cima e tive a certeza de que dois olhos nos espiavam através das persianas. Mal sentamos e Pedro Paulo perguntou.
              — Acredita, agora, ou não?
              — Não sei. É uma história incrível.
              Tomamos café, conversamos mais um pouco e despedimo-nos. Para ter certeza segui-o até o hotel, certifiquei-me que subiu ao quarto, antes de voltar ao prédio. Peguei a chave com o seu Expedito dizendo que esquecêramos ali um objeto. Na porta da residência, encostei o ouvido, esperei, mas não ouvi barulho algum. Fui ao 343 e escutei vozes e risadas. As duas ainda conversavam animadamente. Escondi-me e esperei. Quarenta minutos depois aquele andar sinuoso, de passarela, apareceu, caminhou até a casa de Pedro Paulo, abriu e entrou. Esperei alguns minutos, girei cautelosamente a chave, afastei-me um passo e, forçando a maçaneta, girei-a, abrindo subitamente a porta mas, por descuido, caí sobre o tapete. A beleza assustou-se, saltou, petrificou-se no éter, elevou-se mais um pouco, até tocar na laje, e começou a rir.
              — Pensei que fosse mais inteligente que o Pedro Paulo, senhor Jonas. Gostei das suas maneiras elegantes. É uma pena.
E rápida com as palmas voltadas para mim, elevou-me um metro do piso, girou-as colocando-me na posição horizontal, e comecei a levitar, em direção à janela, enquanto ela descia e ficava de pé, sempre me exibindo essa arma macia, perigosa, de dedos longos. Percebi que suas unhas eram perfeitas, vermelhas, enquanto me afastava do prédio. Fiquei parado, fixando o nada, entre um prédio e outro da avenida. Quis gritar mas não consegui. A voz desapareceu. Lá dentro dois olhos azuis, (lembrando-me as lagoas serenas da minha infância, no interior) me fitavam. Eu estava no mesmo nível do seu rosto. Os dentes brancos e perfeitos apareceram num sorriso maroto, enquanto ela colocava os braços numa posição estranha, como se segurasse uma bola invisível. O esmalte brilhava refletindo o Sol gostoso que vinha de fora. Inesperadamente, sem hesitar, ela girou as palmas das mãos para baixo... Vi-me solto, desligado, livre, e mergulhando em direção ao asfalto...

Albino Júnior

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