O Segredo
Hoje acordei e me senti estranhamente calma, embora a dor nas costas seja o pior dos pesares que eu possa sentir aqui. Sou ainda jovem, ainda poderia ser mais uma pessoa na cadeia produtiva. Mas não. O mal conspira em segredo e quando o Universo quer, ele faz o que a gente menos deseja. Acordar ainda é um dos segredos para mim. Graças a Deus eu acordo! Tenho vida, tenho pulmões que respiram. Porém, atenção! Psit! Nem um pio! Mal respiro nestas horas. Sorvo o ar tão delicadamente que passaria por uma medusa, um pólipo do mar, fazendo o ar entrar lentamente para sorver as partículas cristalinas de luz que permeiam o ambiente sombreado em que me encontro. Assim me alimento ainda de esperança e de quebra, mantenho o silêncio que é a dobra de meu segredo, o manto de minha existência. Devo existir em segredo. Que ninguém me ouça, que jamais notem a minha presença, se é que alguma vez a notaram, mesmo na época em que eu vivia solta como o ar livre nas montanhas ou como os pássaros que cantam quando o sol mal se levanta no Horizonte que eu vejo definhar em altas horas. O fio de luz começa em cor acobreada, assume a tonalidade de uma nesga alaranjada, com o passar das horas vem a luz da janela, cegante e bela, oh como pode ser assim, tamanha beleza se eu daqui não a toco, nem sequer a pressinto?
Como pude chegar a isto?
Atenção! Psit! Nem um movimento. Atreva-se a isto, maldita barriga; atreva-se ao mínimo tremor, desgraçado dedo incontrolável! Ninguém deve saber que eu sequer existo, devo ser tênue como um fio de cabelo negro, devo ser como o musgo que medra na sombra das catacumbas, sem medo e secreto... Devo ser o projeto de vida jamais escrito! Nem um movimento! É o mote do que resta de minha vida, agora. Já fui bela, em vida livre era admirada. Fui linda, os homens me cortejaram. Nunca tive as filhas que eu queria porque nunca achei os homens que sempre quis. Agora vejo claramente que fui usada. Não quero me desculpar, porém. Se aqui cheguei, uma parcela tenho de minha decisão irrefutável! Cada movimento pode desvendar o meu degredo. Assim, de lado, minha delgada superfície pouco oferece para ser olhada. Como antes, só que mais palpável, minha invisibilidade é minha maior arte, meu subterfúgio é o precipício de minha fuga. Sem nada, a pele e os ossos. Os ossos, a pele. Estalam os ossos, os passos no corredor, como se eu pudesse, encolhem-me ainda mais! Ainda mais, se fosse possível!
Hoje eu acordei e me senti estranha. Senti que vibravam as cordas de minha alma presa a este corpo vazio, que a fome me acompanha até que a mitigo na calada da escuridão. Nem eu sou feita de ferro, tenho as fraquezas da carne, em meu cerne sou ainda uma pessoa. Triste, serenamente, imensamente triste. Calma, porém. Quando vem o silêncio, chega o momento certo, aquele em que eu sei que poderei finalmente deixar minha escura e sórdida caverna. Saio sem mais barulho que faria uma mariposa ao bater asas na noite dos tempos e vagueio em busca de meu alimento. Procuro não bastar demais o que sinto: Minha única companheira me deixaria então! Se ela me deixar, deixo de sentir que eu ainda existo. Ela indo embora, não me justifico mais em presença daquilo em que acredito: daquele que me foi fiel até agora. É em nome dele que eu a debelo, mas só em parte, porque a arte do segredo está exatamente aí, no ser comedido, no deixar de chamar atenção. Psit! Um estalido! Será mais uma de minhas juntas combalidas? Terá sido aquele que me procura em vão sem piedade, sem nenhum freio? Terei eu falhado e deixado um traço na negra escuridão da noite, um suave vento soprou em seu ouvido, despertando-o para seguir-me? Em delicada retirada, eu subo, passo a passo, ainda com as lembranças no céu da boca, rumo a minha casa. Casa, o que restou dela, a única que tenho. Lar, o que mais me faz falta agora, na hora entre a vida e a morte, na hora em que todos são frágeis. Na hora em que seu pescoço se expõe serenamente ao mundo das víboras: O Sono, irmão da Morte.
É nessa hora que apareço e sumo.
Flavio Gimenez